segunda-feira, julho 16, 2007

Família feliz

6:25
O menino subiu para a cama dos pais sem os acordar. Passados três minutos já estava enfadado e falou: Estou aqui!
A voz do menino entrou no sonho de ambos sem que acordassem. Então ele disse mais alto: Estou aqui!
Passado três segundos repetiu no mesmo tom a declaração, os pais abriram os olhos ao mesmo tempo e viram o seu filho ali, no meio deles. Então a criança riu muito alto, muito contente e disse: Vá! Um beijinho! Um beijinho!
Os pais entreolharam-se, sorriram e beijaram-se nos lábios.
9:30
Está bom tempo vamos à praia, disse o pai. Boa!!!! Gritou o filho. Não posso, disse a mãe, tenho que fazer as limpezas, e rematou, Vão vocês!
O filho olhou para o pai que no momento olhava a mulher, atónito. Sentiu o olhar do filho e rodou a cabeça para ele dizendo: Vamos ajudar a mãe para irmos todos à praia? O menino sorriu e disse que sim com um aceno de cabeça e expressão de obediência militar.
Porém, a mulher fitou o homem dizendo: Não é preciso! Vão vocês! Eu cá me arranjo! Preparo-vos um almoço de príncipes para quando voltarem!
Então o homem sentiu outra vez o olhar do menino em si mas não lhe correspondeu. Engrossou a voz e alongou as palavras, fingindo ser Deus a falar: Caaaaaala-te mulheeeeeeer! Vamos ajudaaaaaaaar-te ou senããããããão...!
A mulher olhou o homem, riu, e disse, mais contente que uma periquita a quem abrem a gaiola: Então... que tal começarem pela casa de banho? Eu fico aqui na cozinha.
12:30
A família almoça na esplanada da praia
18:30
O menino vê os desenhos animados
21:00
A criança, estafada, adormece após ouvir metade de uma história.
22:30
Os pais retiram-se para o quarto e...
24:40
Adormece a mulher
24:42
Adormece o homem

E nessa noite, sem que eles soubessem, como sempre, conceberam uma filha linda.

sábado, julho 14, 2007

O Ecologista

Foi convidado pelo ministério para dar uma palestra sobre o ambiente, num congresso nacional sobre ecologia. Era presidente da Associação de Ecologia de Lisboa há 3 anos. Homem dotado para as letras, excelente orador, ficou contente e aceitou prontamente o convite, depois de confirmar com a secretária que para esse dia tinha algum tempo, no meio dos seus afazeres.
Falou de tudo o que se passava no país, extendendo mesmo os dados para a realidade europeia, referindo-se a algumas entidades com a tranquilidade de uma manifesta autoridade, efectuando sobre elas alguns juízos de valor.
O seu discurso demorou somente 45 minutos, mas conseguiu arrancar da plateia uma grande e sincera ovação. A sua palestra acabou, e ele, recompensado pela boa receptividade do público, sorriu, agradeceu, levantou-se e dirigiu-se para a saída, onde o esperava uma dúzia de jornalistas sedentos de algumas palavras. Homem já acostumado a estas coisas, informou, sem deter os passos, que não podia falar por ter que honrar um compromisso, dali a 20 minutos. Mas os jornalistas não o largaram e bombarearam-no de perguntas às quais só respondia com reprovadores movimentos da cabeça. Quando chegaram ao carro ele abriu a porta, e antes de entrar, uma pergunta destacou-se no meio da confusão: "Pode, por favor, fazer somente uma pequena declaração para os media?" A pergunta foi feita num tom claro e pertinente e ele consentiu. Virou o rosto para os microfones e câmaras e disse: "O nosso mundo está na corda bamba, a rebentar pelas costuras; ou nós todos, num esforço conjunto, mudamos o comportamento relativo às questões do ambiente, ou condenaremo-lo a uma morte muito próxima, com tudo o que isso implica. Obrigado!"
Entrou no carro, fechou a porta e arrancou. Os jornalistas então desataram todos a rir ao mesmo tempo, depois de um curto período de silêncio. Um riso franco e aberto, saudável, como quando nos contam uma anedota surpreendentemente engraçada.
O carro do homem arrancava barulhento, e atrás de si deixava, saída do tubo de escape, uma enorme e densa nuvem de fumo negro.

quarta-feira, julho 11, 2007

Até que a morte nos separe

Depois de alguns anos de casamento de muita felicidade, ela começou com frequência a irritar-se. Ele acalmava-a sempre com uma mistura de firmeza, razão e afecto. Depois dessas pequenas vitórias faziam quase sempre amor.
Ele foi gerindo os maus humores da mulher assim, pacientemente, com a humanidade de um grande coração. Porém, os acessos de irritação deram lugar a pequenas fúrias que ele passou a gerir com muita dificuldade, acabando por lhe retirar da sua própria vida o sossego que qualquer homem preza, sobretudo quando dentro de casa.
Um dia houve a última briga: Ela acabou por lhe jogar com os talheres à cara, gritando-lhe: Odeio-te cabrão, odeio-te!
Ele então deixou de a ver, olhava para o sítio onde ela estava e só via, no lugar do rosto, uma núvem branca. Para a núvem ele despejou, das profundezas de si mesmo: Tira umas férias! Vai fazer sexo seguro com outro homem! Deixa-me em paz!
A mulher caiu de joelhos no chão, os olhos começaram a lacrimejar e ele então viu-lhe o rosto modificado por uma dor que ele de imediato compreendeu. Sentiu-se impelido a ir para junto dela, levantá-la do chão, mas um instinto qualquer deteve-lhe o movimento. Então ela olhou-o com ódio. Desviou os olhos para o chão que, de alguma forma misteriosa, absorveu aquela fúria toda. Antes de levantar outra vez o olhar ela já tinha percebido qualquer coisa.
Recomposta levantou-se, ajeitou os vestido, e olhou para dentro do olhar dele. Disse então, Desculpa-me, e de um salto abraçou-o longamente com toda a força que lhe restava na alma, agora finalmente redobrada.

domingo, julho 08, 2007

O cão

Quando se mudou para aquela casa, a meio de um monte que continuava para cima em penedos e árvores centenárias, percebeu que ali ia ter hipóteses de ser feliz.
Passado uma semana, no entanto, ouviu o ganido de um cão que o horripilou. Um ganido porlongadíssimo. Passaram-se tempos de tranquilidade até que o ganido lhe entrou outra vez ouvidos e alma adentro. Foram precisos vários meses para perceber que o ganido se dava sempre à mesma hora, 2 da tarde e só às quartas e sábados. Um dia, quarta-feira ouviu o ganido e arrancou em direcção a ele, num ponto mais abaixo do monte, depois da estrada que o cortava como uma fronteira.
Vislumbrou ao longe um cão de estatura mais pequena que média a comer, preso a uma corrente num terreno cheio de peças de ferro velho onde ao meio se levantava uma casa de tábuas de madeira e telhado de zinco. Talvez fosse esse o cão...
No sábado seguinte, antes das 2, colocou a pistola no bolso e foi averiguar.
Às 2 em ponto a porta da casa abriu-se e, automaticamente, o cão começou a ganir aquele ganido terrível. Surgiu da casa um velho gordo que tranportava uma pequena terrina com comida. O cão afastou-se o mais que pôde dele esticando ao máximo a corrente. O velho pousou a terrina, chegou-se a ele e depositou no corpo canino um pontapé impiedoso que o cão aguentou ainda a ganir. O velho afastou-se e o cão, em silêncio e de barriga a arrastar o chão, dirigiu-se à terrina, cheirou-a e começou a comer em gestos lentos de resignação.
Ele assistiu a tudo com o estômago em polvorosa e um nó seco na garganta. Sentiu a pistola no bolso, dirigiu-se à casa, bateu na porta sob o olhar interrogativo do cão. A porta abriu-se trazendo-lhe aos olhos um rosto lascivo e cínico. O velho perguntou a sorrir, que deseja? E ele tirando a pistola do bolso respondeu, O único cão que aqui há és tu, cabrão! Apontou o cano à testa e matou-o com um só tiro. A seguir, dirigiu-se ao corpo canino, sentou-se ao seu lado e começou a contemplar as nuvens altas que lhe traziam à imaginação rostos humanos de verdadeiros Reis e Rainhas. Tirou a corrente da coleira, pegou no bicho e levou-o para casa, do outro lado da fronteira do monte.

O presidente

Entrei no bar com a confiança abalada por sorrisos irónicos e olhos sarcásticos. A mesa estava repleta de colegas viciados. Merda, pensei, há um lugar vazio, vou ter de me sentar com eles. Servi-me de café e sentei-me no meu lugar. O sr. Ricardo, nesse momento entrou na sala e, ao balcão, serviu-se de café e começou a bebê-lo com o olhar compenetrado num sítio qualquer muito longe dali. Deu-me vontade de me levantar e ir ter com aquele homem mas, parecendo-me uma atitude demasiado ostentiva, deixei-me estar no meu lugar. Foi então que tudo começou. E as palavras que vão ouvir foram sempre faladas no tom elevado que se usa para falar às multidões.
O Presidente perguntou, Quem é que está com o Sr. Ricardo?
Por instinto respondi no mesmo tom, Em que causa???
-Vou despedi-lo!
-Por que motivo?
-Por não ter cumprido ordens que lhe dei!
-Que ordens foram essas?
-Mandei-o limpar o campo lá de fora e ele recusou.
As pessoas presentes giravam mecânicamente as cabeças, ora para o Presidente ora para mim, e às vezes dirigiam o olhar para o Sr. de quem se estava a falar que se mantinha imperturbável olhando o chão.
- Fazem parte das funções dele, limpar o campo lá de fora?
O Presidente baixou a voz, Não vem no contrato mas eu mandei- e lavantando a voz de novo- E sou eu quem manda aqui!!!
Nesse momento não me surgiu resposta e o Presidente voltou à carga, Quem está com o Sr. Ricardo que se levante.
As pessoas presente entreolharam-se com os peitos oprimidos e deixaram-se sentados.
Filhos da puta cobardolas, pensei, não mexem um dedo para calar este banana. Olhei-os a todos, puxei a cadeira para trás e comandei as pernas para para me colocar ao lado daquele gigante intocável.
Na cara do Presidente, ao olhar para mim, acendeu-se um sorriso trocista e um brilho malicioso no olhar. Ia começar a falar mas uma coisa imprevista aconteceu perante nossa genuína incredulidade: A D. Aninhas, mulher de 72 anos, levantou-se e veio ter connosco gritando, Ando farta desta merda!
Atrás da D. Aninha veio o Sr. José que arrastou o colega Vasco que deu autoridade à mulher Nicole, cuja coragem redobrada animou a D. Amanda, restando apenas três pessoas com o Presidente. Eu ainda pensei, ainda se vão levantar e aquele corno vai ficar sozinho.
Mas enganei-me. O presidente, de cara avemelhada pela cólera levantou-se espumando saliva pelos beicos de animal de carga gritando, Não faz mal!!!vou despedi-lo à mesma!!!!, saindo de passadas largas pela porta que não lhe servia a não ser pelo facto de ser a que mais perto estava. Os outros três, sem saber o que fazer, acabaram por se levantar, todos ao mesmo tempo, para, em passadas rápidas, seguir aquele que era o seu mestre.

sábado, julho 07, 2007

Os adultos deveriam querer sempre a excelência das suas crianças e dos outros adultos. Mas só se pode construit a excelência com excelência...
A excelência só pode alcançar-se com o auto-regulamento e hetero-regulamento rigoroso de comportamentos. Os adultos devem então perceber que só podem ser uma de três coisas: educadores e educandos/educadores/ ou/ educandos. Há um momento em que se pode dizer que a excelência é alcançada, é o momento em que se passa a educador ultra consciente das suas acções que, no entanto, jamais podem deixar de ser auto-regulamentadas dado que o desvio enquanto força anda sempre à espreita para emergir e nos pregar uma partida...
A vida...a vida é excelente...e, ao contrário do que muitos possam pensar, excelentemente justa.

quinta-feira, julho 05, 2007

O amor

Há muito tempo que ele tinha percebido que a existência de almas gémeas fazia todo o sentido, e explicava-a com base em raciocínios científicos. Este é o relato que irei fazer, com todas as forças de verbo que possuo, de como ele encontrou a dele.
Quando se libertou de tudo e, portanto, deixou de procurar, passou a olhar para todas as mulheres com toda a alma que tinha. Passou a lidar com elas de forma a dar entender, sempre, que elas são quem contam, que sem elas o homem que havia nele simplesmente não existia, ou mesmo o sentido único que nele nasceu desde que ,em criança de infantário, se uniu espirito-sexualmente a uma colega da sua idade, enquanto os outros dormiam na sesta mal vigiada da única auxiliar de ensino.
Passou anos sem saber quem era e a encher a mala de coisas que pouco a pouco o foram construindo de forma a, de um momento para o outro, finalmente desabrochar.
Os olhos das mulheres. Os olhos das mulheres, cantava sempre que podia dentro do silêncio tranquilo da sua inocência nunca perdida, os olhos das mulheres são a coisa mais bela que há.
Até que um dia, sentado ao computador, viu um poema que lhe suscitou a imagem das profundezas onde um dia se deixou cair quando num sonho morria, iamgem na qual se abandonou e que no peito lhe fez abrir de repente a vontade secreta de a conhecer. Ela escrevia como ninguém as coisas mais sentidas e providas de um sentido tão normal para ele que começou a conheçê-la pouco a pouco, até ao momento que percebeu que não iam morrer sem um dia darem as mãos. O computador uniu-os sem que dessem por isso e a liberdade que cada um respirava no seu mundo passou a ser uma só, na ânsia tranquila de que chegasse o momento solene e incalculado em que finalmente se juntassem nos seus olhares ambos cheios de infinito.
Ela e ele continuaram a crescer nos anos que passavam longe um do outro, até que tudo o que faziam era, primeiro na subtileza de um instinto sobre-humano, e depois no flagrante reconhecimento que esse tudo, com os seus evidentes defeitos, lhes agradava mútuamente; tudo o que faziam era, dizia, feito a um momento para três realidades distintas que se tocam sempre e que para sempre serão impossíveis de separar: a humanidade, eles próprios e, finalmente, o próprio outro.
Combinaram sempre encontrar-se sabendo-se já encontrados, e os encontros fugiam-lhes sempre, num prolongamento insofrido do que sabiam ser inevitável.
Quando ele entrou no café, toda a gente lhe dirigiu o olhar numa convergência para a qual toda a vida se treinara. Ele sentiu e suportou a força da toda aquela humanidade e olhou para ela, que distraída, rabiscava num papel o desenho vivo do espaço vazio que existe entre a melancolia e a felicidade. Nesse momento, os olhos que o observavam dirigiram-se para ela num cúmplice e geral entendimento. Ela levantou lentamente a cabeça e entrou directamente nos olhos dele. Ambos ficaram presos a um só momento. As pessoas viravam a cabeça fitando um e outro até que ela se levantou e dele se aproximou. Os seus rostos sérios denunciavam a ausência de brincadeira. Então ele abriu os braços e a eles ela juntou os seus. O abraço que deram foi a primeira impressão digital do verdadeiro amor. Não houve olás nem bons dias. Sairam em silêncio e alheios a tudo. Andaram muito tempo sem falar, num passo sincronizado de calma.
Saíram da cidade e, ao avistarem o primeiro campo aberto, verde de relva, povoado de árvores de copa alta e de flores silvestres de variadíssimas cores, entreolharam-se, perceberam qualquer coisa e desataram a correr na sua direcção, rindo muito alto num contentamento genuíno.
Tiveram 4 filhos, tiveram 9 netos e 21 bisnetos até que ele morreu, dizem que a preparar caminho para ela.