domingo, julho 08, 2007

O cão

Quando se mudou para aquela casa, a meio de um monte que continuava para cima em penedos e árvores centenárias, percebeu que ali ia ter hipóteses de ser feliz.
Passado uma semana, no entanto, ouviu o ganido de um cão que o horripilou. Um ganido porlongadíssimo. Passaram-se tempos de tranquilidade até que o ganido lhe entrou outra vez ouvidos e alma adentro. Foram precisos vários meses para perceber que o ganido se dava sempre à mesma hora, 2 da tarde e só às quartas e sábados. Um dia, quarta-feira ouviu o ganido e arrancou em direcção a ele, num ponto mais abaixo do monte, depois da estrada que o cortava como uma fronteira.
Vislumbrou ao longe um cão de estatura mais pequena que média a comer, preso a uma corrente num terreno cheio de peças de ferro velho onde ao meio se levantava uma casa de tábuas de madeira e telhado de zinco. Talvez fosse esse o cão...
No sábado seguinte, antes das 2, colocou a pistola no bolso e foi averiguar.
Às 2 em ponto a porta da casa abriu-se e, automaticamente, o cão começou a ganir aquele ganido terrível. Surgiu da casa um velho gordo que tranportava uma pequena terrina com comida. O cão afastou-se o mais que pôde dele esticando ao máximo a corrente. O velho pousou a terrina, chegou-se a ele e depositou no corpo canino um pontapé impiedoso que o cão aguentou ainda a ganir. O velho afastou-se e o cão, em silêncio e de barriga a arrastar o chão, dirigiu-se à terrina, cheirou-a e começou a comer em gestos lentos de resignação.
Ele assistiu a tudo com o estômago em polvorosa e um nó seco na garganta. Sentiu a pistola no bolso, dirigiu-se à casa, bateu na porta sob o olhar interrogativo do cão. A porta abriu-se trazendo-lhe aos olhos um rosto lascivo e cínico. O velho perguntou a sorrir, que deseja? E ele tirando a pistola do bolso respondeu, O único cão que aqui há és tu, cabrão! Apontou o cano à testa e matou-o com um só tiro. A seguir, dirigiu-se ao corpo canino, sentou-se ao seu lado e começou a contemplar as nuvens altas que lhe traziam à imaginação rostos humanos de verdadeiros Reis e Rainhas. Tirou a corrente da coleira, pegou no bicho e levou-o para casa, do outro lado da fronteira do monte.

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