quinta-feira, julho 05, 2007

O amor

Há muito tempo que ele tinha percebido que a existência de almas gémeas fazia todo o sentido, e explicava-a com base em raciocínios científicos. Este é o relato que irei fazer, com todas as forças de verbo que possuo, de como ele encontrou a dele.
Quando se libertou de tudo e, portanto, deixou de procurar, passou a olhar para todas as mulheres com toda a alma que tinha. Passou a lidar com elas de forma a dar entender, sempre, que elas são quem contam, que sem elas o homem que havia nele simplesmente não existia, ou mesmo o sentido único que nele nasceu desde que ,em criança de infantário, se uniu espirito-sexualmente a uma colega da sua idade, enquanto os outros dormiam na sesta mal vigiada da única auxiliar de ensino.
Passou anos sem saber quem era e a encher a mala de coisas que pouco a pouco o foram construindo de forma a, de um momento para o outro, finalmente desabrochar.
Os olhos das mulheres. Os olhos das mulheres, cantava sempre que podia dentro do silêncio tranquilo da sua inocência nunca perdida, os olhos das mulheres são a coisa mais bela que há.
Até que um dia, sentado ao computador, viu um poema que lhe suscitou a imagem das profundezas onde um dia se deixou cair quando num sonho morria, iamgem na qual se abandonou e que no peito lhe fez abrir de repente a vontade secreta de a conhecer. Ela escrevia como ninguém as coisas mais sentidas e providas de um sentido tão normal para ele que começou a conheçê-la pouco a pouco, até ao momento que percebeu que não iam morrer sem um dia darem as mãos. O computador uniu-os sem que dessem por isso e a liberdade que cada um respirava no seu mundo passou a ser uma só, na ânsia tranquila de que chegasse o momento solene e incalculado em que finalmente se juntassem nos seus olhares ambos cheios de infinito.
Ela e ele continuaram a crescer nos anos que passavam longe um do outro, até que tudo o que faziam era, primeiro na subtileza de um instinto sobre-humano, e depois no flagrante reconhecimento que esse tudo, com os seus evidentes defeitos, lhes agradava mútuamente; tudo o que faziam era, dizia, feito a um momento para três realidades distintas que se tocam sempre e que para sempre serão impossíveis de separar: a humanidade, eles próprios e, finalmente, o próprio outro.
Combinaram sempre encontrar-se sabendo-se já encontrados, e os encontros fugiam-lhes sempre, num prolongamento insofrido do que sabiam ser inevitável.
Quando ele entrou no café, toda a gente lhe dirigiu o olhar numa convergência para a qual toda a vida se treinara. Ele sentiu e suportou a força da toda aquela humanidade e olhou para ela, que distraída, rabiscava num papel o desenho vivo do espaço vazio que existe entre a melancolia e a felicidade. Nesse momento, os olhos que o observavam dirigiram-se para ela num cúmplice e geral entendimento. Ela levantou lentamente a cabeça e entrou directamente nos olhos dele. Ambos ficaram presos a um só momento. As pessoas viravam a cabeça fitando um e outro até que ela se levantou e dele se aproximou. Os seus rostos sérios denunciavam a ausência de brincadeira. Então ele abriu os braços e a eles ela juntou os seus. O abraço que deram foi a primeira impressão digital do verdadeiro amor. Não houve olás nem bons dias. Sairam em silêncio e alheios a tudo. Andaram muito tempo sem falar, num passo sincronizado de calma.
Saíram da cidade e, ao avistarem o primeiro campo aberto, verde de relva, povoado de árvores de copa alta e de flores silvestres de variadíssimas cores, entreolharam-se, perceberam qualquer coisa e desataram a correr na sua direcção, rindo muito alto num contentamento genuíno.
Tiveram 4 filhos, tiveram 9 netos e 21 bisnetos até que ele morreu, dizem que a preparar caminho para ela.

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