domingo, junho 06, 2010

Catarina

Helder Perestrelo escutava os seus pensamentos minuciosamente; entregava-se a essa tarefa todo o santo dia, que são sete por semana, e houve um dia que ficou especialmente estarrecido porque, ao pensar na cidade onde nascera, sentiu as correntes da saudade apertarem-lhe o ventre e o peito sem piedade, como só os deuses sabem fazer bem.
No dia seguinte, estava numa agência de viagens a marcar lugar num avião que o levaria a Luanda.
Perestrelo já não era novo. Encontrava-se naquela idade em que a beleza da juventude dava lugar a pequenos sinais ou traços denunciadores das marcas inexoráveis da terceira idade. Porém, ele não se apercebia disso. Abandonara o hábito de se observar ao espelho há muito, na altura em que a sua barba deixara de ser penugem e concretamente no momento em que, no espelho, viu para lá da carne e contemplou a sua caveira sem luz, negra e brilhante; perdera nesse dia todo o interesse por si próprio. Contudo não se tornou triste nem deixou de se cuidar. Vivia para os outros e reaprendeu a arte de sorrir. Desenvolveu uma técnica a que chamou de altruísmo social. Sorria para os outros profunda e calmamente e, na altura em que se apercebia do eminente colapso de energia vital que alimentava o seu sorriso, são, lia na alma dos olhos do seu interlocutor, todos os sofrimentos que essa pessoa sofrera; lia-lhe também as alegrias que eram sempre menores, e utilizava a razão para escolher a melhor palavra, a mais adequada, a que faria "clic" no íntimo do seu concidadão. Muitas vezes não tinha que dizer mais que uma frase para causar a mais estrondosa gargalhada.
Por isso, Perestrelo dizia a brincar e muito a sério que era um pobre palhaço.
Deixara todos os seus negócios nas mãos de um primo querido e apanhara o avião das 6 da manhã. Ao seu lado sentara-se uma mulher que se viria a revelar muito bela, inteligente, culta e divertida. No dedo anelar dela conseguiu ver a marca de uma aliança e, no seu semblante, a tristeza profunda de quem está a sofrer da ruptura de uma longa relação.
Quando Perestrelo sorriu, ela desatara a rir fazendo dele um homem feliz. Foi nesse momento que percebeu que era ela, a oculta razão da sua viagem. Deixou de sentir saudades. Passadas 4 horas chegaram ao seu destino. E Perestrelo, ao sair do avião, levava na sua a mão de Catarina.