domingo, maio 27, 2007

A metamorfose dos enganados

O sol rompia o horizonte roubando lentamente a noite. A madrugada, calma e serena, parecia querer dizer ao mundo, como um pai que zela pelo filho firme e carinhosamente, vive este dia em paz. Mas o mundo, há tanto tempo entortado e teimoso, não se deixava aclarar, nem se rendia ao apelo de mais um novo dia.
Os olhos dele, cansados da insónia inflexível, repousavam nas ondas longínquas que reflectiam em cor de laranja os primeiros bons dias do dia. As mãos seguravam nervosamente os joelhos, os pés como martelos batiam um após outro no chão e a sua mente não arranjava nenhum lugar para onde pudesse afastar o sentimento que o roía e corroía. Despedira-se dela com ressentimento e este, em vez de ter diminuído com o tempo, aumentou até se transformar em rancor que, transbordando-lhe a alma, passou a um ódio doido e suave que cresceu dentro dele de tal forma abruptamente que de um dia para o outro o transformou por completo. Nos dois primeiros dias as pessoas acariciavam-no com palavras sinceras, na sinceridade de lhe estranharem a ausência do sorriso no rosto com que sempre as brindava. Mas ele mudara. Essas mesmas pessoas que ele sempre amara, em vez de lhe oferecerem, como antes, o ânimo singelo de que os homens precisam para sobreviver e prosseguir a favor ou contra o desconhecido, recordavam-lhe apenas e cruamente as últimas palavras que trocara com ela. Então, arrepiava-se-lhe o rosto, abanava a cabeça e cuspia para o lado continuando a andar, sorumbático.
Andava nisto há uma semana. Ela telefonara-lhe todos os dias e ele todos os dias lhe desligara o telefone na cara até que, ao sétimo dia, o telefone não tocou. Ele estranhou e sentiu a sua falta. Olhando para o telefone, preto e calado, um medo terrível começou a tomar forma agitando-o convulsivamente. “Fui muito duro com ela. Fui muito duro com ela”
E por muito que tentasse afastá-la, a imagem dela aparecia-lhe incessantemente, morta, como uma má premonição.
Então o telefone tocou e ele jogou-lhe a mão sofrega e repentinamente aliviado.
Sr. Filipe?, Sim, é o próprio!, Conhece uma jovem de nome Sofia Águia?
O coração apertou-se-lhe no peito e as palavras saíram-lhe a custo, Conheço, é minha amiga, Passe por favor na morgue do Hospital de cima que temos um corpo para identificar. Clic. E foi tudo.
Ele estava a adivinhá-las e o céu caía-lhe assim na cabeça sem que o deixasse respirar, o ar tornara-se uma matéria sólida, o chão movediço e a alma...
O ódio doido e suave que tinha vindo a sentir por ela sofria a metamorfose dos enganados e transformava-se lentamente em culpa até que esta tomou a forma de um gigante “FUI EU QUE A MATEI! fui eu que a matei...”
Entrou na morgue com a cabeça erguida, acompanhou o médico e o polícia e aquele abriu a gaveta donde saiu o corpo inerte. Ele olhou para o cadáver dela e sorriu. Olhou o polícia nos olhos e vomitou uma gargalhada nervosa. O médico pensou repentinamente ao ver a cena:“enlouqueceu!”. Mas ele estava lúcido. Aquele corpo não era o de Sofia.

domingo, maio 06, 2007

#25

Se tu a amas verdadeiramente também ela te vai amar; evita equivocáres-te, poupár-te(lhe)-ás sofrimento. Porém o equivoco e o sofrimento não poucas vezes fazem parte do processo.