sábado, setembro 21, 2013

sexta-feira, setembro 20, 2013

A selva



Arreliado por moscas investidoras, conseguia a calma com movimentos harmoniosos, adequados e profícuos.
O calor fazia tremer o horizonte da savana. As árvores, sequiosas, faziam esticar as suas raízes, com esforços redobrados, no intuito de captar réstias de humidade, e nos seus ramos descansava um grupo de macacos sob a vigilância cerrada do macho dominante que zelava pela dinâmica relacional dos seus companheiros, ao mesmo tempo que cuidava do espaço em redor, antecipando a chegada de predadores, garantindo a segurança, o repouso e o bem-estar de todos. O rio serpenteava ao longe, como se fosse o bicho malevolente que um dia ajudou a desencadear a origem do mal, e as zebras pastavam, umas mais nervosas que outras, mas todas numa aparente calma, apenas refutada por arrepios constantes da pele e movimentos bruscos da gorda cauda que chicoteava insectos alados e vampirescos.
As leoas deitadas, de pança cheia, observavam as crias que brincavam umas com as outras, mordendo-se e patapeando-se, exercitando inocentemente capacidades vitais; uma delas, a mais curiosa, num relâmpago de tempo, encontrou o olhar do progenitor que a fitou  atentamente por um segundo e que num ápice, afastou as pálpebras abrindo rapidamente muito os olhos para os baixar logo de seguida. A cria, estimulada pela inteligência e sabedoria do pai, saltou e pôs-se em corrida, atacando-o.
 O grande leão, contente, deixou as patas do filho bofetearem-no repetidamente, encarando-as como doces carícias; o pequeno, cansado da brincadeira, passou a morder com cuidado as patas do rei da selva, estabelecendo sem cessar pequenos contactos visuais, até que o leãozinho decidiu morder o focinho do ser donde proveio, magoando-o. No instante seguinte a ter provocado a dor, o infante retraiu-se e olhou a expressão do pai, desagradada. A criança felina compreendeu um pouco da sua força, e deixou-se cair deitando-se, atónita. Então o pai, orgulhoso do crescimento recente do primogénito, baixou a cabeça e, com carinho, passou a língua rugosa pela face do seu primeiro filho que, sentindo alívio, suspirou e entrou em estado imediato de sonho. O leão levantou o olhar e viu a sua fêmea preferida olhá-lo atenta e docemente. O macho, como num comando invisível e telepático, chamou-a; ela levantou-se devagar, caminhou majestosamente até ele que a recebeu com um brilho sorridente no olhar. Ela retribuiu a faísca e deitou-se, baixando os olhos devagar, mais calma que nunca, começando a ronronar.
O leão, também apaziguado, bocejou profundamente e ergueu-se com a lentidão relaxada do tempo impiedoso.
 Olhou tudo em redor.
 Viu o horizonte tremer de calor, as árvores a procurarem bebida e o macaco dominante a fitar algo ao longe.
E as zebras, quando sentiram o seu olhar, ergueram as cabeças. Uma a uma, cada qual no seu sobressalto, pôs-se em sentido.

segunda-feira, setembro 16, 2013

Todo o corpo é oco; no seu vazio, dançando, reside a eternidade.

domingo, setembro 15, 2013

Olha atentamente também o escuro. Por detrás do que não se vê encontra-se uma luz. É de lá que brotam os sonhos.

O elefante



Pisava pesadamente o caminho  milenar.
A graça dos seus movimentos harmonizava-se com o movimento lento das constelações que, àquela hora da madrugada, ainda brilhavam, calmamente.
Caminhara três dias e três noites; o cansaço, somente gerido por momentos ocasionais de descanso,  permitia-o aguentar a contenda perseverantemente. O velho elefante mantinha o olhar no horizonte, não perdendo de vista o que perto estava. Adivinhava, para lá da última linha de árvores, o final da sua odisseia. O instinto animal, esgrimido com a sabedoria dos progenitores e anciãos,  guiara-o desde a nascença e permitiram-lhe viver uma vida plena, possante e cheia de memória. Tinha atrás dele setenta anos de experiências e a recente queda dos seus molares impedia-o de se alimentar.
Desde que começara a travessia consciente ditada pelos derradeiros tempos de velhice, começou a examinar, muito lenta e rigorosamente, as imagens, sons  e sentimentos  da sua vida.
Transposto o limiar físico que separa o espaço de vida do sítio de morte, o elefante estacou. Os olhos arregalaram-se-lhe sobre uma visão grandiosa. Num vale redondo como o disco solar, repousavam num silêncio branco as ossadas de elefantes de outras linhagens, bem como de seus antepassados. Um frémito percorreu-lhe o corpo inteiro e o elefante sorriu. Caminhou devagar, olhando para a esquerda e para a direita com os sentidos mais apurados que nunca. Enchia-o de alegria pacificadora o odor, a luz, e a própria temperatura daquele ambiente. Quando chegou ao fim do mar de ossos sentiu um impulso para se deitar. Porém, antes disso, levantou olhar para, uma última vez mais poder ver a linha do horizonte e distinguiu, uma dezena de metros à frente, as ossadas de um último animal. Baixou a cabeça, dividido entre o deixar-se cair pesadamente  e o avançar e decidiu-se por um último esforço. Antes de se desencadear o  clarão neuronal responsável pelo primeiro movimento percursor da sua última caminhada, inspirou profundamente ganhando novas energias.
Ao chegar ao lado do esqueleto destacado do grande conjunto de ossadas, cheirou-o  longamente, rodeando-o várias vezes até ter um pressentimento;  um arrepio bom dançou por todo o seu enorme corpo até que ele teve a alegre e reconfortante certeza, este aqui é quem eu há já tanto tempo não via, este aqui é o meu pai.
Colocando o progenitor entre o grupo e ele próprio, como que protegendo-o, deitou-se calmamente e adormeceu.
Sonhou com olhares que o observavam afectuosamente , de forma espantada, maliciosamente ou ainda de forma hostil. Os olhos deixaram-no e ele voou a uma velocidade espantosa, percorrendo os territórios que conhecera e que haviam sido dele.
O presentemente maior animal da nossa terra tão bonita despediu-se assim da vida, sonhando. E fisicamente, a última coisa que o seu cérebro experimentou foi a produção de substãncias químicas que proporcionaram a mais um dos reis da terra, o último e supremo prazer.

sábado, setembro 14, 2013

O peixe


O rio em velocidade convulsionava-se, agitado menos por dor e mais por se sentir furioso, descia a encosta, ora lambendo o lado esquerdo da margem ora lambendo o direito, mantendo-se denso, compacto e firme no meio do seu caudal.
Uma vara de eucalipto tosquiada, tornada lisa e clara, à qual mãos esculpidas pelo tempo prenderam na ponta fina um fino fio de nylon, um anzol escarpado e, para dar profundidade à armadilha, três chumbos de peso acertado, tremia num inconfundível sinal.
 A sensibilidade atenta do pescador arrancaram-lhe uma fracção de sorriso, rapidamente desaparecida para dar lugar a uma expressão resoluta, o peixe é grande, vai dar luta.
O vento derrapava entre a luz, e à volta do homem o único som que se ouvia era o do silêncio e o da aflição do peixe que se debatia com todas as suas forças para escapar ao comando inflexível, para se furtar à força do objecto produzido por uma inteligência superior e refinada, para si inconcebível, inexplicável e inimaginável.
Na verdade o pescador nada sabia sobre o que, dentro de água, se passava à volta do seu peixe; ignorava se os outros peixes, os da sua espécie, tinham consciência da desgraça do seu companheiro; em águas agitadas como estas, pensou, estes animais não devem andar em cardume, mas mesmo assim, continuou, quem sabe, se por força de um esquema social, não mantém contacto visual entre eles?
O peixe cansado de resistir, fatigado de lutar, cedeu, e deixou-se conduzir por entre o meio que era o seu para outro que só vira em segundos, nos saltos que dera para caçar moscardos apetitosos.


sexta-feira, setembro 13, 2013

quinta-feira, setembro 12, 2013

Bom dia companheiros!



Os prédios dormem, gigantes, apesar do grito ofegante das árvores que mudam a essência do seu respirar. Um homem sai de casa e dirige-se à praia feita de grãos enormes de areia basaltica cujas unidades pesam mais de duzentos gramas; chega ao pé da água, suspira um alívio merecido, pensa, pronto, já vi o mar, e volta com os pés cheios de humanidade, revigorado, para mais um dia de trabalho.
Os bancos de jardim esperam, solitários e frios, a companhia e o assento das nádegas quentes das pessoas. O parque infantil, com os seus baloiços, castelo, e cavalinhos de molas, aguarda ansioso a ansiedade viva e os gritos contentes das crianças que, sob o olhar atento dos pais, são levados a abordar os aparelhos e a brincadeira o mais calmamente possível.
E eis que amanhece. A primeira luz faz-se ouvir silenciosamente e avança, devagar, a trezentos mil quilómetros por segundo, alcançando primeiro os olhos já abertos, depois tudo o que é  morto, se é que há alguma coisa inanimada neste mundo, ainda as folhas paradas, e então, as finas pálpebras do pássaro que do seu ninho diz aos outros, a jeito de canção, sem ser por obrigação, mas por acontecer naturalmente, bom dia companheiros!