sexta-feira, novembro 30, 2007

Brilha!

O copo escorregou-lhe da mão e caiu no chão fragmentando-se em mil pedaços. Ele tentou apanhá-lo com um movimento rápido da outra mão e viu-o cair sem mexer um qualquer outro músculo do corpo. Dir-se-ia completamente descontraído, pleno na sua consciência, consciente de que existem coisas destinadas a quebrar, não obstante os nossos maiores esforços para as proteger. Coisas como os humanos.
Ele sabia que, na sua dimensão, estava sujeito aos pensamentos dos humanos, mesmo sendo apenas e ainda uma criança. Tudo começara nos primórdios de uma época em que as estrelas não tinham acabado de nascer e a luz das que existiam convergiam para um único ponto: a zona onde o diabo criou atrevidamente o frio.
"Os deuses da minha cabeça permitem-me dizer que hoje é um dia muito feliz!"-disse ao pai enquanto varria os pedaços de vidro espalhados pelo chão. "Uma mãe deu à luz três crias destinadas a mexer no mundo como nunca ninguém mexeu ainda"
O pai, levantando os olhos do livro, focou no filho um olhar absorto e perguntou: "Qual mundo?" "O dos deuses dos humanos"
"Esse mundo ainda existe? Os humanos ainda acreditam nos seus deuses?"-Perguntou com genuína curiosidade-aquela não era a sua área do saber.
"A criança, contente por ter um pouco da atenção do pai, parou de varrer os cacos de vidro e equilibrando-se na vassoura respondeu do fundo da sua mente palavras que nunca antes tinha dito ou pensado: "Os humanos não precisam de acreditar nos seus deuses para existirem. Alguns condenam os que pensam que podem chegar aos deuses, outros percebem que apenas estes sabem a melodia que existe entre as vidas, as mortes e todas as circunstâncias, e outros ainda fazem os maiores esforços para assobiar uma nota só. São os que os deuses mais amam. Fazem-nos sofrer até ao limite das suas possibilidades e quando acabam por quebrar, bafejam-lhes com o sopro que ilumina e aquece e deixam-nos à deriva solitários, para que aprendam de uma vez por todas que não há hipóteses de se sentir a solidão no seu extremo sem chamar a atenção de um ente querido, por muito longe que esteja" A criança então concluiu, quase apressadamente, quando pressentiu que ia perder a atenção do pai- "É estranho e confuso o mundo dos deuses dos humanos! Lá na escola ninguém está a gostar desta matéria!"
"E os humanos? Não são eles que estão telepaticamente ligados aos da tua idade? O que voçês fazem com eles?" O filho sorriu-"Sim pai, estamos telepaticamente ligados! Mas por enquanto ainda não podemos interagir com eles. O professor deu-nos a entender que antes disso somos obrigados a ser bombardeados por eles até que a nossa mente se abra e possa dar o feed-back que eles precisam."
"Mas passam por cima dos deuses deles?"
"Explicou-nos também que nessa altura já os humanos aprenderam a melodia proibida"
"Que melodia proibida?"
"A que existe entre a vida, a morte e todas as circunstâncias"
O pai compreendeu, sorriu e o filho voltou aos seus cacos de vidro enquanto ouvia "Eu não quero que o mundo acabe! Eu não quero que o mundo acabe!"

domingo, novembro 18, 2007

Manias

Quando chegou à varanda viu o vizinho de calções e camisa engomada, a andar sorrateiramente e a girar a cabeça furtivamente de um para o outro lado enquanto tirava o pénis de dentro dos calções para se aliviar na levada que passava em frente da casa de ambos. Um vivia em baixo. O outro vivia em cima. O de baixo era o vizinho que explorava a parte de cima. Isto de exploradores e de explorados começou quando Deus fez o mundo; se não fosse assim os mandamentos não seriam 10 mas sim 11.
A manhã estava fresca e novinha em folha, tinha acabado de passar aquele momento de luz em que a madrugada perde aquele encanto calmo e especial para dar lugar à primeira agressividade da manhã, sob a qual qualquer animal estremece, mesmo que não acorde. Aquele momento em que qualquer homem abençoado pelo tempo, espaço, sensibilidade e razão, somos muitos assim, somos é muitos mais assado, em que qualquer homem abençoado, dizia, pode dizer num segundo "o que foi foi, o que é é, e agora tudo mudou"
O explorador, mal agarrara no pénis desviou o olhar para cima para esbarrar no olhar do explorado, acontecimento pouco usual e ainda menos confortável entre homens e que provocou no que tinha a arma na mão uma reacção dupla e natural de protecção: começou a falar, ao mesmo tempo que com um movimento de anca lhe virava as costas. As primeiras palavras foram "olha! é mesmo aqui!" O resto do discurso foi conversa banal mas necessária a que o seu esfinctér relaxasse para que a urina fluisse e fosse de encontro à água pura, utilizada por mulheres, alguma distância mais abaixo e alguma distância mais acima para lavar roupa.
Ele não se importava. Tinha uma máquina de lavar roupa em casa.
A razão porque o narrador deu a este texto o título manias e também porque não se esforçou para ir contra corrente ao encontro dele é uma e só uma: a mesma que o leva a desabafar sozinho em casa enquanto lava o prato no lavatório: "33 anos, 33 anos" Um cansaço saudável e vaidoso. Saudável e vaidoso.
Quando o explorador abanava a pila com cuidado para não se sujar, o explorado disse-lhe: "Sabes que há no médio oriente uma corrente cristã com 11 mandamentos? Os 10 primeiros são iguais aos nossos!" E o explorador, contente e satisfeito, perguntou-lhe numa gargalhada bem disposta: "Então qual é esse teu 11º mandamento?"
"Não é meu, é de Deus: Não mijarás na água que os outros usam!"
Então ao explorador apeteceu colaborar com o narrador e disse ao explorado, acabando com o tom a conversa abruptamente como quem diz estás aqui estás na rua, "Cá para mim és paneleiro, tens cá umas manias!"

sexta-feira, novembro 02, 2007

Vida

Vida, Vida,Vida,Vida,(...), Vida,Vida,Vida,Vida,Vida,Vida,Vida,Vida(...), Vida (...)
É verdade! Há montes de tempo que não crio que só rio, que me abstenho de te ver e encontrar, talvez pelo medo constante de me perder, de dizer ao mundo inteiro que quando sou forte é só a fingir e que quando sou fraco é somente a forma que encontrei de ser forte...
Passam dias como os anos e o abismo à nossa volta vai-se desfazendo cada vez mais frequentemente, à medida que o conhecimento que temos dos outros vai aumentando. E conhecer os outros é meio caminho andado para nos conhecermos a nós próprios, pois da mesma matéria somos todos feitos se nos quisermos abster de moralismos e juízos perenes.
Vejo ao longe uma vaca que rumina por entre os calhaus nus e penso de repente, como quem não pode evitar, porque será que dizem que ao humano é dado conhecer muita coisa mas que a fatalidade, o drama são, à falta de uma palavra mais forte, intui-a se puderes, tudo o que precisamos perceber para levantar de uma vez por todas o nosso cadáver ainda vivo e andar em frente, ser conforme o ambiente, as circunstâncias, fazer força sem forçar, entrar em sintonia e deixarmos definitivamente que a natureza aja em nós para nos colocar com a justiça divina no nosso devido lugar. Tudo se torna fácil quando sabes qual é o teu lugar. Que o teu lugar é só um, inalterável, desde que cresceste até que morreste e que morrer não pode ser mais do que morrer, pronto, já está.
Mas e o prazer de respirar? Já alguma vez pensaste que esse movimento constante é de todos os prazeres, aquele que sendo o mais esquecido, é o mais poderoso, o mais verdadeiro, o mais subtil, aquele que mais do que todos, nos poderá indicar da mais firme forma, que afinal estamos vivos. Inspira! Expira! Vive! Morre! Inspira! Expira! Inspira! Expira! E pronto. Não dá para parar. Somos parte de isto tudo. A guerra que travamos com os outros não passa de uma desculpa para não percebermos com a flagrância imposta a todos os que podem pensar, que a maior guerra travamos connosco próprios. Connosco próprios, connosco próprios...Inspira, Expira. Eu, tu, ele, ela, nós, vós, eles. Tudo o mesmo. Tudo o mesmo a lutar desde sempre por um lugar, o nosso lugar, um único espaço, aquele que já é teu, simplesmente porque és.
Mas peço encarecidamente, não vos deixais enganar por palavras que, como todas, apenas revelam um aspecto da realidade e, ao mesmo tempo, a ambiguidade inerente a todas as coisas. É que temos de lutar, somos obrigados a lutar por aquela parte nossa que ainda é animal. Lutamos por tudo aquilo que fomos, que somos e que seremos. Lutamos afincadamente por aquilo que já perdemos parcialmente, mais a caminho da totalidade que da parte. É algo a que nos obriga o terrível estatuto de se estar vivo. Seja pelo lugar, para o qual somos inevitavelmente atirados, e no qual nos devemos manter de cabeça erguida e rosto a condizer, seja pela consciência de que nada mais vale nos mundos todos, do que a simples mestria de se ler, na maior pluralidade de momentos possível, naquele, por exemplo, perpetuado por mim, vosso eterno criado, a palavra mais bela e preciosa que os nossos antepassados inventaram para nós, aquela que é nossa e de todos, mesmo para os que não aprenderam a ler, senão nas constelações, nas brisas mornas de Verão, ou nos frescos copos de água que vamos bebendo e que nos obrigam, sempre, a sorrir: Vida.