quinta-feira, maio 11, 2017

Jorge Palma e Mafalda Veiga

quinta-feira, maio 04, 2017

O assassínio punido.



As andorinhas voavam, brincando, fazendo voos rasantes, por cima do homem que nadava. E este, contente, sorria liberto e em êxtase, em comunhão com a natureza.
 Ouviu um motor que, perto dele, começou a trabalhar, barulhento, parou de nadar e rodou a cabeça para ver onde estava o barco. Viu-o e ao marinheiro que o comandava, sentado, e sentiu um arrepio gélido ao verificar nele um sorriso menos rude, mais provocatório, e muito mais cruel.
Apreensivo, o homem recomeçou a nadar, dando conta que os pássaros tinham desaparecido dali. Sentiu-se sozinho, abandonado, e reparou que a direcção que o barco tomava era a dele. Pensou que faria se a intenção do marinheiro fosse passar-lhe por cima. O marinheiro cessara de sorrir e agora, olhava o nadador, fixa e sadicamente.
E no momento em que concluiu que o barco ia mesmo abalroá-lo, encheu os pulmões de ar e mergulhou.
 A uma profundidade por pouco suficiente para não ser ferido pelo hélice, o homem ouviu o motor do barco a passar rente a ele. Nadou debaixo de água na direcção oposta à da embarcação e quando precisou de ar veio à tona de água. Olhou para trás e viu o barco, as andorinhas que tinham voltado e o marinheiro que, agora em pé, segurava numa caçadeira.
 O homem não teve tempo para mergulhar de novo. Quando esboçou a intenção de o fazer já o marinheiro tinha disparado. Os chumbos penetraram no rosto que, desfigurado, manchava a água de sangue que se espalhava abundantemente. O marinheiro, de cara fechada, inexpressivo, aproximou-se devagar do homem que atingira e, ao certificar-se que o tinha matado, levantou as mãos e a cabeça ao céu, cerrou os punhos e gritou de forma selvática e triunfante. Quando o grito findou, um dos pássaros voou rente ao rosto do assassino e com uma garra fez um corte na sua testa, dando uma ordem inquestionável. O resto do bando aproximou-se do marinheiro que esbracejava, tentando libertar-se em vão da ameaça inconcebível. Os pássaros começaram a bicar e a cortar incessantemente o seu rosto até que, para finalizar o ataque, lhe arrancaram os olhos.
Depois, uma a uma, pousaram no cadáver do nadador que flutuava, para sempre silenciado, e que já não ouvia, quer os lamentos das andorinhas quer os gritos irrelevantemente furiosos do cego.

domingo, abril 09, 2017

Há uns abutres que fazem ninho a mais de mil metros de altitude. Mas o que é mais fascinante neles é que ficam juntos até que a morte os separa.

quinta-feira, março 23, 2017

Imprevisibilidade



Enquanto as manadas seguiam rumo ao norte estabelecido por decisões de interesseiros políticos demagogos, sujeitos aos interesses económicos dos grandes empresários, o sol sorria para uma mulher que, deitada sobre uma toalha, esticava o rosto como se quisesse ficar um pouco mais perto da fonte de calor que há tanto tempo permite às moléculas organizarem-se ora com prazer ora com dor no constante e imperioso processo de evolução da vida.
Os planetas estavam alinhados de uma forma tal que os videntes, apaixonados pela insegurança e crendice das pessoas a quem eles submetiam os seus truques manipuladores, avisavam: -Minha senhora, plutão está em cima de saturno pelo que deve ter muito cuidado com os maus-olhados; ou então:  Marte está em frente de Neptuno ora isto quer dizer que o senhor vai ter sucesso no amor . E nos dois casos: São 60 euros. Volte cá para o mês que vem se faz favor e se quiser que eu lhe garanta um caminho feliz.
A praia dourada servia de palco às dezenas de gaivotas que, orientadas contra o vento, se mantinham quietas com raras mas evidentes disputas hierárquicas, em trocas de bicadas que resultavam numa nova disposição organizacional, isto de viver gregariamente não pára. Ou se pára é por momentos fugazes de descontracção, não sabem as gaivotas aquilo que as espera. Nisso são iguaizinhas aos homens.
E a mulher que apanhava sol, respirava profundamente, sabendo que o problema para o qual o seu irmão a colocara não estava nem por sombras resolvido; que ainda tinha muita luta pela frente, luta essa remetida para uma reunião para dali a duas horas. Ela era advogada e ele músico. O problema era simples: Ele acusava certa pessoa de se ter apropriado de composições suas. A irmã deveria provar que o registo de direitos de autor tinha sido feito após uma gravação onde constavam as canções. Andam os homens a roubar e a usurpar há tantos séculos que era para a irmã inconcebível que o irmão tivesse facultado a um colega, de boa fé, o cd onde constava sessenta minutos de música original. Este facto era dado a susceptibilidades da parte do músico, e a mulher, tendo tocado no assunto uma vez,  percebeu logo que era uma tecla onde não valia mais a pena tocar; teria que trabalhar no irmão as suas características infantis e ingénuas por outra via, noutro momento. Por agora restava-lhe defender os interesses dele no tribunal.
Aquecida naquele dia frio, ainda que primaveril, ela decidiu nadar. Mal sabia que um grupo de tubarões patrulhava aquelas águas. Nadou vinte minutos antes de ser mordida pelo primeiro animal. Logo de seguida a ele se juntaram outros que a devoraram por completo sob o olhar aterrorizado de uma criança que até ali se divertira a manobrar um papagaio de papel.
Acordou com a testa empapada de suor, viva, que o narrador se a pode matar num pesadelo também a pode ressuscitar num sonho bom.
Ela lembrou-se das palavras que dissera ao colega: "Tenho medo de nadar no mar!"

quarta-feira, março 22, 2017

Pragas



Há meia dúzia de anos atrás, na praia de areia de Machico, aconteceu algo inusitado. Eu nadava crawl quando o meu olhar sorridente por algum pensamento bom encontrou, numa respiração, outro olhar; um severo olhar!!!Em três respirações vi o olhar do homem cada vez mais hostil; deixei de sorrir e deu-me alguma coisa má. Decidi mudar para o meu estilo favorito, mariposa, e passei a nadar na direcção do gajo, só me desviando à última hora. Quase o abalroava. Ouvi-o protestar, muito zangado, em alemão. Nunca me tinham rogado pragas em alemão! Servem tanto como as ditas em Português...
Saí da água e fui para casa. Nada mais havia ali a fazer.

sexta-feira, março 03, 2017

Roger Waters



“(…)Can you free yourself enough to experience the reality of life as it goes on before you and with you(…).”

segunda-feira, janeiro 18, 2016

o cinto



A madrugada respirava ainda o orvalho frio e delicioso quando ele despertou. Vestiu as calças de pele de cabra e colocou o cinto. Saiu de casa sem comer, como sempre, e começou a caminhar.
A cidade tinha espaços verdes com árvores centenárias. Ao redor, penedos e rochas cinzentas olhavam para baixo, vigiando o movimento das plantas e folhas nos fortes mas flexíveis ramos das árvores mais novas , que naquele momento se agitavam calmamente em consonância com a leve brisa que soprava como um assobio de velho treinado.
Caminhou sessenta e dois minutos e tudo estava calmo; as primeiras pessoas a sair de casa faziam-no contentes por viver mais um dia na sua metrópole. Uma espirrou, tirou o lenço do bolso e assoou-se; outra olhava para sul e sorria para a lua em quarto minguante; outra conduzia freneticamente o seu carro; ele viu-os aos três. Ao ver o carro a descer rapidamente a avenida principal franziu o sobrolho. Nesse momento, uma folha, levada por uma  brisa mais forte, foi embater no vidro do condutor embriagado que se assustou e guinou para a esquerda, perdendo o controlo do veículo; este, como um bicho de conta acossado, deu várias voltas sobre si mesmo e parou ao lado da estrada, em cima de um relvado, como se estivesse a descansar.
Ele correu, tirou o homem do carro, e percebeu que o irresponsável tinha uma grave hemorragia na perna direita. Tirou o cinto e fez um garrote acima da ferida.
Deixou o homem e correu durante vinte sete minutos, até ao quartel. Depois de certeiras informações, quatro bombeiros deslocaram-se rapidamente com ele até ao local do sinistro. Mais tarde veio-se a saber: graças ao cinto de cabedal a vida do infeliz fora salva.
A partir desse dia passou a carregar uma dúzia de elásticos no bolso de dentro do casaco.