quarta-feira, junho 15, 2005

Uma história IV

Para que o prezado leitor saiba, sem ter que recorrer a um dicionário de expressões, promessa de narrador alívio sem dor e, como prova indiscutível, eis o que André começou por escrever antes de rasgar a folha por achar que o conteúdo estava demasiado pesado e complicado para uma abordagem que se pretendia leve e de fácil digestão.

Minha muito querida Rute:

Não é fácil, por vezes torna-se mesmo difícil e até insuportável, seguir em frente abandonando passados irrealizados. Porém torna-se notório, para alguém que se mantém livremente atento à complexidade de enredos que se desenrolam à sua volta, que perder ocasiões de uma presumível felicidade é algo a que devemos acostumar-nos, sem que deixemos de batalhar pela desintegração das palas que a sociedade actual quotidianamente nos quer impor com o turbilhão de aliciantes e drogas, para que o nosso olhar se feche em torno de algo, em vez de se manter aberto e lato para aquilo que vai surgindo, vindo de diversas direcções. Mas essas pequenas ocasiões de uma presumível felicidade não se podem colocar no mesmo rol de outras situações que, por nos acontecerem sem que tenhamos tido sequer tempo para pensar ou ponderar nelas, são distintas tal como o preto o é do branco ou a saudade da satisfação de uma necessidade; e dessa distinção ainda figura uma característica, a mais fundamental, que é o facto dessa situação nos mergulhar forçosa e suavemente no fluxo intemporal do suave sentimento de Amor que anda de mãos dadas com a humanidade desde que esta é o que foi, antes de se ter tornado no que é.
"Desde que esta é o que foi, antes de se ter tornado no que é???" Foi neste ponto que André releu tudo. Desgostou e mandou para o caixote de lixo enfrentando nova folha branca:

Minha muito querida Rute:

Experimentámos no passado algo que gosto de considerar como muito belo e gostava de me sentar num banco qualquer contigo a falar sobre o assunto.
Há um ano atrás encontrámo-nos e desde aí que sucederam mais umas reviravoltas na minha vida, confusões que não importa agora descrever, e por isso não pude escrever mais cedo.
Espero que te encontres bem e que possas marcar encontro o mais breve possível.
Deixo-te o meu contacto pessoal para se prefer...ah é verdade!! Disseste que não gostavas de falar ao telefone!! Paciência...Aguardarei uma carta tua.
Teu, sinceramente,
André

Releu e achou que estava telegráfico e simples, que devia cortar a parte do contacto pessoal mas como isso o obrigaria a escrever tudo de novo numa nova folha de papel, deu-lhe um ataque de preguiça que neste caso era justificado, dado que a noite já ia avançada, mas indesculpável quando, em vez de retomar a carta noutro dia, fechou a folha num envelope preparando tudo para enviar logo de manhã. "O que há-de ser meu à minha mão irá parar!", pensou André para justificar o seu acto sem se lembrar que não foi com desmazelo nem num dia que se fizeram Roma e Pavia. Este erro iria custar-lhe a resposta de Rute que não encontrou na carta motivos superiores àquilo que estava a viver no momento: o fim do plano minucioso da possibilidade de ir para Lisboa continuar os seus estudos. Para isso faltava apenas o telefonema do irmão a dizer-lhe que o tal apartamento estava vago; a inscrição no mestrado estava feita e paga.
A decisão de Rute em não responder ao antigo namorado de infância era em tudo egocêntrica e resultava do entusiasmo natural de uma rapariga nova da parte rural do país que nem para tirar o curso superior experimentou viver numa cidade grande e que agora iria para a grande Lisboa...
Mais tarde, como iremos ver, Rute arrepender-se-ia desta decisão, ao mesmo tempo em que a considerava estúpida de todo dado que André morava naquela cidade. "Então se estava de partida para o pé dele???" André, o seu grande amor de infância, cuja única grande falta foi ter-lhe escrito um dia uma carta que lhe parecera na altura pouco entusiasta. Agora, relendo-a, com os olhos banhados de lágrimas e o coração apertado, depois de ter encontrado André num jantar, Rute achava-a perfeitamente normal.
O fim desta história, para sossegar algum leitor mais impaciente, dar-se-á no momento em que todos os personagens tenham, no fim de algumas infelicidades, um final feliz. Por enquanto tem este narrador de encontrar forma de juntar André e Rute naquele jantar. Tarefa para um outro dia. Claro.

5 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Que história! :)
Tem algum fundo de verdade ou saiu tudo da tua imaginação?
bj

8:33 da tarde  
Blogger Filipe disse...

Tudo do meu coração, sem ouvir a razão.
Falando sério acho que a base da história são vivências minhas; emoções, relações frustradas etç;
depois transformo e iludibrio com as palavras que saem.

10:03 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Talvez penses que estou a intrometer-me demasiado na tua vida por aparecer com alguma frequência no teu blog, mas não é esse o meu objectivo nem a minha intensão. Por vezes dou por mim com vontade de dizer duas palavras a alguém, seja o que for e a quem for. Faz-me sentir bem e menos sozinha. Não te conheço e o mais provável nunca hei-de vir a conhecer-te, mas também não é esse o meu objectivo.E é mais fácil falar com quem não se conhece. Procuro simplesmente duas palavras de alguém, sentir que a meio da noite uma pessoa está por aí, algures e se dá ao trabalho de me responder. Podes ser um jovem de 20 anos como uma pessoa madura de 60, mas pelo menos sei que de tempos a tempos existe alguém do outro lado que me atura.
bj

3:11 da manhã  
Blogger Filipe disse...

Tenho 31 e é um prazer ter-te no meu blog, não o vejo como intromissões.
O fim da história já se adivinha perto.
Espero poder dar-te coisas, muitas que dissolvam impiedosamente essa solidão de que falas.
Beijos

5:50 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Obrigada pelas tuas palavras.
Já agora, sou um pouquinho mais nova, tenho 25 anos.
Não penses que sou um bichinho do mato, enfiado na sua caverna :) Não é isso, tenho uma vida normal mas para além do meu cão, à noite não tenho muito com quem falar e por vezes apetece-me sentir que há vida que mexe lá fora.
Não sei muito bem explicar o que sinto, mas acho que deu para perceber.
bjs

12:22 da manhã  

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