sexta-feira, junho 10, 2005

Uma história II

Ele acordou bem disposto e motivado. Tão depressa saiu da cama que ia partindo uma perna ao escorregar numa meia perdida. Já é tempo de sabermos. Ele chama-se André.
A primeira coisas de que se lembrou de fazer depois do pequeno almoço de frutas, queijos e bolachas integrais, foi de discar o número de Helena para fazer o número do "esqueci-me aí de algumas coisas, posso passar a que horas?", afinal a ruptura tinha-se dado pacificamente, não havia razão para ela rejeitar um pedido natural desses.
Depois da primeira tentativa André contou mais 15 e desistiu. Tal era a frustração de não ter conseguido falar com ela que os pensamentos lhe saíram severos: "Porque é que aquela puta não compra um telémovel?". Mas a verdade é que Helena adivinhara quem telefonava e não quis atender. Aquilo do telefone tocar incessante e repetidamente parecia diverti-la e assim, deixava-se estirada no sofá como se estivesse a ouvir uma das belas sonatas de Mozart. Outra verdade que só este narrador poderia saber é que, se André tivesse tentado a décima sexta vez, Helena teria atendido e o número poderia ter sido levado à cena. Mas André desistiu e quando Helena ainda esperava o próximo toque já André vestia o casaco para sair de casa e chegar a tempo da aula de Yoga.
Do outro lado da cidade o divertimento de Helena deixara-a com um sorriso amargo nos lábios. "Ora agora que eu ia atender o homem desiste".
Não são poucas as vezes que aos seres humanos é dado cair nestes jogos de amor, mesmo quando, como supostamente acontece entre André e Helena, aquele já não enche os corações dos amantes.
Só a caminho da aula de Yoga é que André, ingénuo por natureza, admitiu a hipótese de Helena ter feito aquilo que realmente fez, não atender propositadamente o telefone; "as mulheres têm cada uma...!"
Decidiu descontrair e procurou na radio o emissor local de música clássica. "Bethoven, nada melhor para agora"
Helena não tomou o banho matinal. Vestiu umas calças de fato treino justas que coladas às pernas bem feitas deixam os homens malucos, não as pernas as calças, calçou os ténis novos de jogging e foi correr à beira-mar. "A partir de hoje começo a treinar. Ando à tempo demais em letargia"
Quer se queira quer não se queira, no fim de uma relação amorosa em que de parte a parte se investiu tempo e pensamento com base em sentimentos sinceros, na ruptura, dizíamos, ambas as partes ficam sujeitas à possibilidade de grandes alterações dos seus sistemas nervosos e, diga-se de passagem, no caso de André e Helena ambos estavam a reagir bastante bem na medida em que ele parecia não estar a descurar a sua mais importante actividade neurofisiológica e ela demonstrara, na atitude que pudemos testemunhar acima, muita objectividade e acerto de pensamento, não fosse a actividade fisica regular um dos melhores comprimidos que podemos engolir contra qualquer tipo de males e Helena foi ao ponto de comprar uns ténis de qualidade e de escolher aquele passeio construído com um piso macio, amortecedor; não iria ficar certamente com dores de costas.
No fim do dia André foi a casa de Helena. Tocou para o sexto andar e passado um minuto percebeu que alguém levantara o auscultador. Helena, à porta da sua casa, olhava no ecrán pequenino para o rosto de André que, fingindo-se distraído, fingiu um olhar ausente. Helena não pode conter uma gargalhada. André metera o dedo no nariz e revolvia o interior da narina agora com uma expressão de louco. Acabou a palhaçada com um alongado e cansado "Abre lá a porta Helena..."
Helena, lá em cima, percebeu e sentiu de uma forma que ainda não tinha experimentado a ruptura amorosa que estava a atravessar. Sentiu uma dor forte, colocou o auscultador no sítio, soltou uma lágrima sólida e espessa, dirigiu-se ao quarto de dormir, abriu a gaveta da mesa de cabeceira, dela retirou um pedaço de papel amarrotado em que vinha um nome escrito com caligrafia de mulher, murmurou num gemido Rute Santos e começou a chorar convulsivamente. Ainda tinha todo um luto por fazer.
Prometi-vos contar o que André fez para recuperar a possibilidade de se corresponder com Rute e afinal, convenha-nos a sinceridade, ele pouco fez se pouco fazer é telefonar uma mais quinze vezes e já sabemos o que mais...; outro dia conto-vos como é que a morada de Rute foi parar às suas mãos, amachucada e suja de lágrimas, se é que lágrimas de amor podem sujar.

2 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Para quando o final da história?
Foi pena não teres dado resposta à minha curiosidade no post "Certezas" mas estás no teu direito.
Vou continuar a acompanhar na mesma a tua escrita.
Bjs

11:10 da tarde  
Blogger Filipe disse...

Gosto de saber que estás comigo.

4:18 da tarde  

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