segunda-feira, junho 13, 2005

Uma história III

André não desistiu. Deixou-se ficar em frente da câmara de filmar embora um clic tivesse denunciado o abandono da ligação. Encostou a cabeça ao vidro e fechou os olhos até que o estalar do trinco da porta do prédio o arrancou do estado de alheamento em que tinha mergulhado. "É ela", pensou, ao mesmo tempo em que abria os olhos e virava o rosto iluminado pela súbita esperança. Mas em vez de ver a sua ex-namorada viu a cara antipática do vizinho com aquela expressão que usamos para interrogar: o que é que este faz aqui? André, percebendo a situação embaraçosa, afinal não é costume de uma pessoa mentalmente sã encostar a testa ao vidro da câmara de um prédio, como se estivesse dormindo, principalmente tratando-se do prédio da ex-namorada...; percebendo a situação embaraçosa, diziamos, André transformou a luminosidade da esperança num sorriso sombrio, triste e ao mesmo tempo envergonhado. O tipo que o viu é o vizinho de cima de Helena e é um gajo tão já conhecidamente porreiro, tão porreiro que ao embaraço de André correspondeu com um sorriso de escárnio; o episódio não pareceria tão infeliz se a acrescentar o que já foi dito o vizinho não carregasse nos braços uma rapariguinha de três anos que olhava, para mal dos pecados deste narrador, atenta e fixamente o sorriso do pai, já caracterizado. Depois há quem se dê ao trabalho de envergar em discussões intelectualíssimas sobre se o carácter de uma pessoa é hereditário ou culturalmente aprendido.
André viu o olhar inteligente da menina a testemunhar o meio e o fim do sorriso do pai e abandonou-se a uma preplexidade serena, olhando o vizinho afastar-se de costas enquanto a menina, virada para trás, lhe dirigia um grande sorriso de infanta inocente mas já não tanto.
Virou-se para o vidro e voltou a encostar nele a testa.
Os poucos minutos que se passaram podiam ter sido para André uma eternidade dado que entrara num género de meditação Zen em que a única coisa que existia para ele era um imenso e imensurável tom ténue da cor branca. De repente deu-se a repetição de vários fenómenos: ouviu-se o estalar do trinco da porta, o mesmo pensamento gritou-lhe dentro da mente "é ela" e a mesma iluminação da mesma esperança brilhava-lhe no mesmo rosto, ao mesmo tempo que o voltava em direcção da porta.
Era ela.
Desculpa Helena, queria dizer-te, telefonei-te hoje de manhã um monte de vezes, que me esqueci de algumas coisas aí em casa e que importava reuni-las, deixas-me subir? Granda tanga. E para desarme, Helena atirou-lhe com o que menos esperava: Vi com atenção tudo e reuni as tuas coisas em dois sacos, vou só comprar água e já subimos os dois para depois desceres com a tua bagagem. Glup.
Aberta a porta de cima Helena entrou e apontou com o pé os dois sacos que André foi logo investigar. Reflectindo rapidamente somou um mais um e o dois que deu foi a evidência de já não ter nada a perder portanto: E...um papel, um papel velho com uma morada, não viste?
Helena mentiu. André acreditou.
Mas porque o prometido é devido antes de fechar este capítulo importa dizer que Helena conservou religiosamente o papel na gaveta da mesa de cabeceira, percebeu que o luto já estava feito quando se interessou pelo funcionário de uma agência de viagens, e três semanas depois de o amor se ter materialmente estabelecido entre os dois, se é que o amor se pode estabelecer materialmente sem deixar de ser amor, Helena decidiu, por honra, telefonar a André.
"Olha, ainda bem que te apanho! Lembras-te daquele papel com uma morada?"
André ficou tão contente, tão entusiasmado que voou para a secretária e começou a escrever uma carta para Rute; o conteúdo dessa carta, por não ser secreto, como nada nesta história o é, será publicado outro dia. Prometo.

1 Comentários:

Blogger Lyra disse...

conheço sim :-)

1:47 da manhã  

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