terça-feira, junho 28, 2005

Uma história (Fim)

Abriram a porta do restaurante como que dizendo abre-te sésamo telepaticamente. O estabelecimento era novo e tinha um aspecto de aquário de águas limpidas onde o ar condicionado mantinha o ambiente fresco. André e Ana mal entraram dirigiram ao mesmo tempo o olhar para a mesa de Helena no momento em que a ouviram dizer olha quem vem ali, palavras com que praticamente acabámos o capítulo anterior. O homem sentado solitariamente na mesa do lado olhou também para Helena mas não ligou importância para o objecto das suas palavras, o casal arranjado por Helena.
André combinara encontrar-se com Ana para levá-la ao restaurante, pensando que depois a levaria a casa. Raciocínio imprudentemente precipitado. O destino frio e inevitável de que já tivemos oportunidade de falar iria reservar para ele algo de muito mais saboroso; mas, voltando ao restaurante, encontramos André e Ana a cumprimentar de longe Helena. Ambos se dirigiram para a mesa enquanto o homem solitário abandonou por momentos a sua para ir à casa de banho. Quando o casal recém chegado cumprimentou o casal já instalado, já o homem da mesa do lado não estava no seu lugar; e, a esta altura da narrativa já se pode adiantar que o homem solitário, para não passarmos a ser obrigados a chamá-lo de homem misterioso, era Tiago, o acompanhante de Rute que, mesmo estando prestes a chegar ao restaurante já não se poderá imiscuir de baixar a cabeça num gesto de aceitação e isento de contrariação, se o irmão lhe atirar à cara que nestas coisas ela chega sempre atrasada.
Dois, Helena e o seu grande amor, Hugo, mais dois André e a amiga de sua ex-namorada, Ana, quatro, mais dois Tiago e sua amiga de mestrado, Rute, seis. Ora que grande emaranhado de pessoas encontramos neste momento. Porém, os acontecimentos são simples e fáceis de acompanhar. Vejamos.
Helena encontrava-se exuberante e extremamente alegre por finalmente conseguir apresentar a André o seu namorado, podendo concluir assim facilmente, numa introspecção futura, a importância e influência que o primeiro lhe tinha outurgado da relação de sete meses. Helena era daquelas pessoas que gostava de contagiar os outros de alegria com as suas próprias alegrias e fazia-o tão expontânea e ingenuamente que acabava por conseguir fazer as delícias dos seus amigos. André, por seu turno, deixara-se mesmo contagiar pela alegria de Helena e , olhando para Ana reconhecia nela agora, talvez por causa da embriaguês emocional que Helena lhe proporcionava, uma beleza muito especial. E foi neste momento que Rute entrou no restaurante e reconheceu imediatamente André, olhando para Ana aquele olhar brilhante de felicidade irredutível; foi neste momento também que, sentindo as pernas tremer e o coração cair-lhe do peito para o estômago que se arrependeu determinantemente por não ter respondido à carta singela que André lhe havia escrito um ano antes. Mas este momento não é duplo, é triplo ou mesmo quádruplo se a ele juntarmos a abismável estupefacção de Hugo e Helena, únicos que puderam testemunhar tudo quase tão macroscópicamente como o próprio leitor; momento triplo porque a adicionar ao já acontecido aparece Tiago que tropeçando numa cadeira se vai estender ao comprido por cima da sua mesa partindo copos e chamando a atenção de todo o restaurante e sobretudo a de Ana, olhada, como já sabemos, por André.
Talvez que as dores do arrependimento sejam tão fortes que irradiem para fora o que não se vê senão por dentro, quando o esforço de quem sofre se vira para a sublimação e para o disfarce; aqui, no caso de Rute, francamente atingida, as coisas correram a seu favor pois o seu par,Tiago, tropeçando na cadeira fê-la dirigir o seu sofrimento para o lugar pouco profundo de onde nascem os sorrisos fáceis e assim facilmente se compôs numa atitude de simpatia, dirigindo-se à mesa onde o irmão já ajudava Tiago a arranjar o que no meio dos copos partidos se podia arranjar. Mas já não o faz sem que André se volte para trás, largando o olhar que tinha em Ana, e a reconheça sem contudo lhe reconhecer aquele sorriso. Num ápice André pensou e sentiu com uma força avassaladora, Sim, é Rute, por detrás daquele sorriso é Rute, aqui?.
Um empregado do restaurante avançou de guardanapo no braço e foi auxiliar um Tiago embaraçado, um Hugo altruísta, ambos sob o olhar atento de Helena e Ana. André não largava Rute e, no momento em que ela se aproximou o suficiente, quando ia a gritar o nome dela o nome que ecoa na sala não é, estranhamente, "Rute" mas sim "Ana", e quem grita não é André, é Tiago.
O embaraço de Tiago transformara-se em instantânea alegria ao ver Ana. "Ana, és mesmo tu?" gritou agora um pouco incrédulo e Ana denunciou que sim, sorrindo timidamente, que era ela, a Ana, uma antiga paixão de Tiago, agora ali reunidos por obra do acaso, numa mesma mesa de Lisboa. "Não te lembras, balbuciou Ana à sua amiga Helena, não te lembras do Tiago?". Pois recordando o olhar do antigo colega, Helena percebeu que a sensação de deja vu anterior não era mais do que o despontar interrompido de um reconhecimentode de alguém que já não se vê há muitos anos e riu, riu muito, viva e alegremente. Depois, ainda avermelhada do riso disse para o namorado, Então esta é que é a tua famosa irmã Rute, ao mesmo tempo em que lhe estendia a mão e a conduzia a uma cadeira.
Dois mais, um mais um, quatro, mais, um mais um, seis.
Assim decorria em euforia o começo do jantar onde ninguém percebeu a troca de olhares cúmplices entre André e Rute, silenciados pelas circunstâncias e únicas pessoas, para além de nós, a perceber que o insólito daquele jantar ainda era maior do que o que os presentes suponham.
Helena tinha alguns conhecimentos de regras de alta sociedade e assim dispôs na mesa, alternadamente homem e mulher. A ordem era a seguinte: Hugo/Helena, André, Ana/Tiago, Rute. Neste momento André encontrava-se a uma distância interminavel de Rute.
A noite foi-se animando com uma grande proximidade entre todos, as conversas fluíam como dois fios de água que não se cruzam, os risos enchiam o restaurante melódicos como os cantos matinais de dois pássaros enamorados, mas o empregado de mesa, responsável por aquela ala do restaurante, atento e já experiente em relações humanas, torcia o sobrolho na tentativa de perceber o que é que estava mal naquela mesa, aparentemente tão harmoniosa. E foi quando começou a levantar os pratos que ele percebeu: André aproveitou o momento, acalmou o ritmo das batidas do seu coração e dirigiu-se a Hugo "Amigo, não te importas de mudar de lugar comigo?". André assim que se senta ao lado de Rute, finalmente para ele e para ela, estende-lhe a mão por baixo de mesa encontrando a de Rute e as duas apertam-se tanto que parece nada haver neste mundo que as pudesse separar. Verdade absoluta. André gira a cabeça e encontra o sorriso de Rute, aquele que ele conhecia. Foi quando Ana observou com ironia simpática, Olhem para eles, parece que se conhecem há anos.
O empregado levantou os últimos pratos e foi-se embora com algo imperceptível nos lábios, era o começo de um sorriso, um sorriso nascido da certeza de um agradável fim de jantar, um fim que era afinal e apenas um começo de algo novo.

Fim

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