sábado, setembro 29, 2007

Adeus, adeus meu amor

O dia estava a acabar. Ele mantinha-se de pé, tronco muito direito e de cabeça erguida. O muro atrás dele bem que podia ser o seu muro das lamentações, mas não era. Ele não lamentava nada. Não sofria. Um sorriso ténue iluminava-lhe o rosto e mil e um pensamentos inundava-lhe a mente, serenamente, enquanto sentia o sol desaparecer-lhe dentro de si. O que leva um homem cego a querer ver? O que é lutar? O que é a paz? Aceitar, querer, crescer. Que é preciso fazer para ser-se livre? O que é isso de se ser livre? Fazer o que se quer, a toda a hora e a todo o instante ou, pelo contrário, a faculdade de se ir contra si próprio em prol de valores de grupo? O que é um grupo? A humanidade é um grupo? É não é? A humanidade é um grupo, não é?
O menino que nele havia sofria agora interminávelmente enquanto a refeição acabava sob o domínio dos adultos. Ele já tinha terminado e o passaporte para a liberdade desejada era falar. Bastava-lhe dizer em voz alta a frase que incessantemente repetia dentro da sua cabeça de 6 anos: "Posso-me levantar da mesa?"
A criança que havia nele sofria, aprisionado, mas sem força suficiente para destruir aquele pequeno sorriso que iluminava o seu rosto de adulto.
De repente, como numa ejaculação violenta, as palavras saíam-lhe da alma numa voz que lhe parecia descontrolada. "Posso-me levantar da mesa?" O chefe da mesa dizia que sim, como sempre, com um sorriso afável, e ele saía da mesa sempre muito triste por ninguém reparar, mesmo olhando-o nos olhos pedintes, que, por ele, já se teria levantado da mesa há muito tempo. Conquistava a alegria da liberdade com tristeza no coração de menino.
Agora, ali em pé, com o dia a acabar, pensava que afinal sempre fora livre, tão livre como as águas de um rio pacato, que descem o seu leito respeitando as curvas, os altos e os baixos dos terrenos por onde passava. Livre no seio da família, livre no mundo, no paraíso, no inferno, na vigília e no sonho, nas alturas e nos abismos, na tristeza e na alegria. Sempre livre desde que confiasse em si e, assim, nos outros. Sempre aprisionado em si mesmo quando, em vez de confiante, duvidava. O que é isso de ser livre? O que é isso de ser aprisionado? Fui feliz? Fiz-me humano? Vivi de facto? Ou andei a dormir? Lutei? Venci?
E de repente, com o tempo a acabar, os olhos azuis dela entraram nos seus e o pequeno sorriso abriu, cresceu, e assim ficou até que morreu. Durante os sete segundos em que o puseram à frente do muro ele caminhou sempre em frente até chegar a ela. Recordou que a última vez que a viu, de perto, apenas pôde ver a metade esquerda do seu rosto. Coisas da vida e...coisas da morte também que a face direita dela apareceu-lhe mergulhada na cor negra do preto carregado que contém em si o mistério de todas as cores. Sete segundos. Sete segundos de vida. E agora, com o azul dos seus olhos a olharem-no por detrás da venda que tapava os seus, ele sentia-se absolutamente livre. Justamente naquele momento em que não podia fazer mais nada. A vida tem razões suficientes para se deixar cair em paradoxos destes. Quem está, está, quem não está que esteja bem. Adeus e obrigado meu amor dos olhos azuis por estares agora comigo. Se pudesse ia visitar-te. Como não posso vieste tu. Obrigado.
A humanidade é um grupo só, não é?
Sete segundos levou o comandante a dizer as três ordens do fuzilamento: "Preparar! Apontar!Disparar!"
Adeus meu amor, adeus meu amor dos olhos azuis.

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