Razão de viver
São miraculosos, preciosos, os momentos em que o tempo não existe. Ele deixava-se estar deitado à beira do riacho, com uma mão mergulhada na água fresca. Os olhos engoliam as nuvens brancas e com uma mobilidade suficiente para ele ir imaginando formas e metamorfoses de formas. Fazia anos nesse dia e tal como todos nós foi vitíma de...do carácter cíclico que emprestamos ao tempo na denúncia flagrante de um medo íntimo de morrer sem ter vivido. Porém ele não acreditava na existência do tempo e vivia tão fora dessa concepção quanto dentro da do espaço. O Espaço era para ele tudo. O espaço em que se encontrava com o mundo ou o espaço em que se perdia, dentro dele, em dimensões que em muito transcendiam as três do físico que conhecemos. Assim, naquele dia de aniversário, desligara o telémovel e abandonara-se a uma tarde recheada de nada e de tudo, sozinho com a companhia de todos, livre e condicionado, esperançoso, triste e alegre, e consciente de que não estava um ano mais velho; estava sim com mais um dia para usufruir, gozar, viver, sentir... Estas reflexões foram interrompidas pela forma brusca de uma nuvem que de repente se tornou negra e invocou rapidamente a ideia de morte. Teve um sobressalto. A mão, mergulhada na água, enviou-lhe ao cérebro a mensagem de uma dor intensa. Olhou na direcção da dor e ainda conseguiu vislumbrar o ondular de uma serpente de cabeça triangular. Observou com curiosidade os dois buracos que o bicho lhe fez na base do polegar. Sentiu-se tonto, sorriu, e baixou a cabeça num abandono total de tudo. Começou a sentir o braço dormente e sorriu de novo; então teve uma vertigem, e na mente dele surgiram dois olhos imensos de um negro muito brilhante, como duas pequenas pedras de basalto, molhadas de água salgada numa madrugada em que se viajou eternamente na concepção de uma criança desejada. Viu os olhos dela a olhá-lo de muito longe como se quisessem dizer-lhe algo que as palavras não podem nem devem exprimir. Ergueu a cabeça que nesta altura estava pesada. Mordeu a mão com raiva e arrancou um pedaço de carne que cuspiu com desprezo; depois, chupou várias vezes o sangue envenenado, saltando decididamente do trampolim da morte para mergulhar novamente e com harmonia no rio a que chamamos vida, com uma única grande felicidade a bailar-lhe entre a retina e as pálpebras docemente pousadas: não tanto aqueles grandes, vivos e belos olhos negros mas aquilo que eles num momento decisivo lhe quiseram dizer.
4 Comentários:
belo texto! mas essa analogia mulher/serpente...
beijinhos :)
Há mulheres que são serpentes, há homens que são piores que isso, mas não concordo que haja neste texto a analogia que referes...Em que aspecto a vês?
Beijos, abraços e paz.
epa Eu n vi analogia nenhuma entre mulheres e serpentes, mas eu n sou católica, por isso ;)
adorei este teu texto; quanto mais me deambulo pelo teu blog mais me apaixono pela sua forma (sua=do blog)
Obrigado Isabel.
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