sábado, novembro 12, 2005

A cama

Todos os dias, depois de acordar, calçava as pantufas ainda com os olhos fechados e cheios de noite já passada. Mas naquela manhã algo de inesperado aconteceu. Quando no mesmo gesto de sempre tentou alcançar as pantufas os seus pés sentiram apenas o colchão. Tentou a beira da cama um pouco mais à frente para outra vez encontrar o colchão. O que se passa? Nesse dia teve de abrir os olhos antes de se calçar, e a imagem que lhe surgiu assombrou-o; o quarto desaparecera com todos os móveis e acima da cabeça só via um céu de um azul embriagante; girou a cabeça e em todas as direcções apenas via um grande mar de um lençol branco; um colchão imenso onde teve a sensação de se encontrar no meio, sentindo-se de repente como uma ilha pequenina, rodeado de uma calma fantasmagórica que lhe lambia o corpo isolado e lhe aprisionava a mente perplexa.
Levantou-se e verificou que o colchão tinha exactamente a mesma densidade que o seu colchão. Começou a andar e quanto mais andava mais o colchão parecia sem fim. Mas manteve a trajectória e caminhou durante horas a fio, até que sentiu um profundo cansaço; deitou-se e adormeceu. Passado uns instantes acordou, completamente rejuvenescido e com a sensação de ter sonhado muito. Tentou alcançar as pantufas e lá estava o colchão, infinito, a roubar-lhe o mundo e a vida. Recomeçou a andar decidido a não parar perante qualquer tipo de obstáculo. E esses esforços foram recompensados. Ao longe começou a distinguir uma forma distinta e à medida que se foi aproximando começou a vislumbrar nela as linhas redondas de uma mulher. Apressou o passo e lá estava ela, nua e bela, adormecida. O seu sono parecia tão sereno que por momentos teve receio de a acordar. Sentou-se a observar-lhe o peito que mexia com a respiração. De repente percebeu que alguma coisa tinha de fazer e decidiu arrancá-la ao sono. Tocou-lhe levemente o ombro arredondado e ela imediatamente abriu os olhos. Ele perguntou-lhe: ”Onde estou?” Ela respondeu “Estás a sonhar” e desapareceu como uma bola de sabão que toca o chão.
Então sentiu que se estava a sonhar precisava de dormir para então poder acordar. Deitou-se e tentou adormecer. Em vão.
Recomeçou a andar até que quase caía num precipício que se lhe abrira de repente à frente dos pés. Olhou para baixo e no fundo longínquo pareceu-lhe vislumbrar a forma de uma cama, da sua cama. Apurou a vista e concluiu, Sim! É a minha cama!
Sentou-se à beira da cama a olhar a sua cama; olhou para trás para a imensidão do lençol branco, olhou para cima para a inacessibilidade do azul do céu, fechou os olhos, respirou fundo, sorriu pela ideia e deixou-se cair. Estranhamente verificou que caía devagar. Caiu muito tempo, como se estivesse debaixo de água com um peso amarrado à volta da cintura. A cama aproximava-se lentamente à medida que descia até que houve um momento em que ele quase a tocava. Abriu os olhos e disse em voz alta, ao mesmo tempo satisfeito, ao mesmo tempo espantado: “Olha! Que estranho.. Era mesmo um sonho!
Calçou as pantufas e resignou-se a reconhecer, como que com as próprias mãos, palpando-a como a uma maçã fresca, quão prodigiosa e deslumbrante é a máquina que temos todos dentro da cabeça.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial