segunda-feira, abril 17, 2006

Canção

Deambulava pelas ruas daquela cidade calma, com o espírito alheado de tudo, dir-se-ia hipnotizado. As pessoas que por ele passavam nem davam conta da sua presença pois há muito o tinham deixado de fazer em relação a qualquer pessoa que passasse. Ninguém ligar a ninguém parece ter sido a regra fundamental imposta pela modernidade e eu diria estar certíssimo disso mas não estou porque, pensemos por um segundo, se fosse uma regra nós quebrá-la-íamos, nem que fosse de vez em quando.
Ia então o nosso herói pelo passeio fora, alheado, até que uma sombra passou à sua frente, acordando-o para a realidade. Piscou os olhos e verificou que uma folha de papel poisava ali, a um passo dele, tão delicadamente como um pássaro muito jovem.
Vou abreviar isto para o texto não ser muito grande e não afugentar possíveis leitores.
Apanhou a folha de papel e nela leu em caligrafia claramente feminina: Telefona-me 942939394
Amachucou o papel, deitou-o num contentor de lixo, lembrou-se dela, tentou adivinhar o que estaria a fazer e sorriu ao imaginá-la deitada numa daquelas camas de piscina, a apanhar sol acima das nuvens, acima de tudo. Depois, estremeceu ao ver a nuvem partir-se e deixá-la ao abandono da força da gravidade numa expressão de terror e aflição.
Não conseguia suportar com tranquilidade a ideia de a ver mal e sofria para paradoxalmente se sentir aliviado na certeza de amor que esse sofrimento lhe proporcionava.
Tinha saudades dela.
Então fez força: Ela parou no ar, ficou sossegada ao ver-se levitar, em segurança, sorriu-lhe e, ao mesmo tempo que o olhava bem a fundo nos olhos, sussurrou-lhe baixinho e muito alegremente:
“Amo-te muito, se não fosses tu...se não fosses tu morria!”.

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