sexta-feira, setembro 06, 2013

A foice

Enquanto os montes respiravam pelas árvores e musgos, os pássaros piavam canções, umas de atrevimento, outras de aflição, ele abria caminho pelos campos de vegetação selvagem e rasteira. Caminhava de olhos postos no chão, circunspecto, e atento ao diálogo entre o vento e as folhas das árvores, testemunhado por cactos em forma de ciúme. 
De repente sentiu algo passar-lhe na nuca, levemente. E, levemente, rodou a cabeça até ver algo que lhe causou um calafrio profundo: uma foice. Nesse momento uma força impediu-o de mover mais a bola que sustém em todos os animais o sempre tenro cérebro. Ficou assim, paralisado por um segundo, para então movimentar livremente a cabeça na direcção da posição original.
O vento calou-se, os cactos rejubilaram e os pássaros deixaram de cantar. Ele ficou só com o barulho silencioso do sol a queimar-lhe a roupa fresca. Ouviu algo. Não soube distinguir se era de alguém que empunhava a foice se era um pensamento: se te virares morres! O primeiro instinto dele foi correr, mas acabou por virar a cabeça para vislumbrar outra vez a lâmina que brilhava, até que aquela mesma força o obrigou outra vez a olhar em frente. Então caminhou em silêncio, resignado, obediente, sentindo uma presença atrás de si que o acompanhava. Pensou num sobressalto: é a morte! a morte apanhou-me! estou no inferno! Daqui já não saio.
Levantou a cabeça olhando em frente e viu uma quantidade enorme de sementes voando, transportadas por uma leve brisa. Sorriu, calmo, e ouviu a mesma voz: podes te virar!
Em vez de virar a cabeça fez um flic-flac para trás, deixando à sua frente uma imagem humanóide horrível que o fitava intensamente com olhos baços, ao mesmo tempo lascivos, inteligentes e mórbidos. Nas mãos putrefactas e fétidas empunhava a foice. A criatura puxou a arma atrás e começou um movimento rápido com a lâmina dirigida ao pescoço dele. Em meio segundo pensou: posso fugir. Deixou-se estar. A morte cortou-lhe a cabeça, desapareceu e ele abriu os olhos. Ao seu lado a sua mulher olhava-o com olhos doces, calmos e sorridentes.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial