domingo, agosto 30, 2009

A esposa

Vi-o pela primeira vez anteontem à noite. Eu tomava um sumo na esplanada do parque e ele chegou, velho, com um ar tanto ou quanto preocupado, e de cabeça baixa. Debaixo do braço trazia um tabuleiro de xadrez. Sentou-se a uma mesa, espalhou as peças e começou a pousá-las lentamente nos quadradinhos brancos e pretos. Quando acabou de montar o tabuleiro abanou a cabeça irritado e voltou a guardar as peças; levantou-se e foi-se embora dali com o passo apressado. Fiquei intrigado, onde estaria o seu parceiro? Que comportamento bizarro fora aquele?

No dia seguinte voltei a vê-lo. Dirigia-se para a esplanada com o tabuleiro debaixo do braço; segui-o. Sentei-me numa mesa ao lado a observá-lo com o canto do olho.

O velho fez exactamente a mesma cena do dia anterior. Montou o tabuleiro com calma irritou-se e foi-se embora apressado. Eu pensei para mim mesmo que gostava de esclarecer aquela história e hoje consegui-o: Ele apareceu na esplanada do parque, sentou-se e começou a montar o tabuleiro vagarosamente. No momento em que ia acabar de montar as últimas peças eu abordei-o: -"Desafio-o para uma partida!"

Ele olhou para mim de olhar absorto como se não me estivesse a ver e respondeu:-"Ok! Sente-se por favor!"

Começámos a jogar.

O velho jogava de forma inteligente, não cometia erros nem fazia ataques. Distribuía as peças de forma irreprimível, à espera de um erro meu. Mas eu estava a jogar bem e depois de algumas trocas de peças sem trazer vantagens para ninguém eu ataquei a sua dama. Senti que o meu adversário estremeceu e olhei o seu rosto. Estava crispado. Começou a tremer e de repente lágrimas abundantes saíam dos seus olhos. Começara a chorar convulsivamente à minha frente. Ali, no meio de uma partida de xadrez, na esplanada do parque.

Eu fiquei alarmado e gritei-lhe: " Senhor, senhor! Que tem?"

Ele olhou para mim assustado, engoliu uma golfada de ar e na hora que expirava esse mesmo ar disse-me num jorro: "- A minha mulher morreu há pouco tempo!"
Depois ficou a olhar para o nada e começou a falar.
"Era a mulher mais bela do mundo. Ficámos juntos 36 anos. Quando sorria, o quarto iluminava-se. Jogávamos muito xadrez. Ela era boa jogadora. Quando perdia falava-me sempre dos seus erros. Melhorava sempre. Às vezes distraía-se e cometia erros fatais. Eu nos primeiros 6 meses deixava-a voltar atrás, mas depois desse tempo ela passou a recusar. A falta que me faz é imensa. Quando passamos muitos anos com a mesma pessoa ela passa a fazer parte de nós. Como duas lapas agarradas uma à outra caminhámos muito. Agora tenho que prosseguir sozinho. Sem saber o que vai acontecer. Como sempre.... Depois olhou-me profundamente nos olhos e disse com voz grave."Meu filho! A vida é bela! A vida é muito bela!"

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