quarta-feira, novembro 29, 2006

acabado

Foi nesse sólido estado de espírito que a fui encontrar. O meu cão meteu-se com ela de forma inusual. Chegou-se de mansinho e com a barriga a raspar na relva, emitindo pequenos gemidos que denunciavam uma dor qualquer que nem ele próprio reconhecia.
Os cabelos dela eram longos, de carvão, e o seu rosto era especialmente bonito. De uma beleza imaculada, firme, que se sustentava por ela própria. O cão tocou-lhe nas costas e ela deu por ele. Passou um braço por cima do ombro e ele lambeu-lhe a mão avidamente como uma criança que chupa um gelado de baunilha e chocolate. Ela retirou a mão, limpou-a com um lenço e ele deu a volta e deitou-se por cima do colo dela com a face esquerda do focinho toda colada à sua perna direita.
Ela começou a fazer-lhe festas longas pelo dorso. Ele rejubilava.
Desculpe, Sim?, Esse cão é meu, Os animais não têm dono, Bom, depende do ponto de vista, eu dou-lhe de comer, eu digo que ele é meu, Se ele fosse seu, como diz, o cão haveria de querer ir consigo, e isso não vai acontecer.
Então eu gritei o nome dele afastando-me da mulher, Bubas! E ele nem virou o focinho. Mais autoritariamente repeti o seu nome. Bubas!
Ela virou o rosto para mim, continuou a fazer-lhe festas no dorso e abriu-se num grande sorriso que logo transformou numa gargalhada breve, Eu disse-lhe que ele não iria consigo, os animais não têm dono, os donos é que à vezes os têm, e quando passamos a utilizar o autoritarismo é porque já nos desligámos de tudo o que realmente importa, sente-se aqui, convidou fazendo com a mão aberta um círculo na relva. Nesse momento uma coisa cá dentro partiu-se, e pelo olhar dela percebi que não só ela o percebera como também que sabia que só ela me podia reconstruir o que quer que seja que agora tinha dentro do peito partido em pedaços.
Sentei-me.
Contei-lhe sem dar por isso a minha vida toda. As palavras entravam-lhe pelos olhos brilhantes e sorridentes, às vezes tornando-se vítreos e sérios, consoante a gravidade dos temas que lhe falava. Quando me apercebi já era tarde. Nunca tinha falado tanto na vida.
Vem, Onde, A minha casa, a minha cadela vai gostar do teu Bubas, são da mesma raça, e eu tenho de te devolver a bela história que me contaste, contando-te a minha, Mora longe, Não me trates por tu, fica-te mal, tudo o que te aconteceu desapareceu no momento em que mo contaste, tudo o que me aconteceu desaparecerá quando to contar, não moro longe, caminharemos uma hora e estaremos lá.
Quando chegámos à casa , depois de aberto o portão e passado o jardim, um cheiro a jasmim inundou-me as narinas enchendo-me os pulmões que expiraram no ar toda a esperança de fazer renascer um amor que nunca morreu.
Sentámo-nos numa carpete grossa; quando ela começou a falar eu comecei a visualizar um filme, o seu filme; e quando acabou a história, estávamos os dois deitados; sussurrava-me ao ouvido: Foi quando o Bubas me tocou nas costas!
O meu peito de repente tomou forma. Aquilo que se tinha partido tinha sido todo o meu passado mais longínquo. Deixámo-nos ficar em silêncio, sem que soubéssemos o que o outro pensava. Ela, deitada de lado, tinha a cabeça apoiada no meu ombro e abraçava-me o tronco, passando uma das pernas por cima das minhas, repousando a mão na minha anca e eu fiquei para ali, em paz, com a incrível certeza de que daria a minha vida por aquela mulher.

3 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Gostei deste teu post.

Fui.

Voltarei.____________________________________Porque és escravo das palavras:)

Diz Ela*

7:33 da tarde  
Blogger Filipe disse...

"Prometeu voltar se o vento mudar
e o vento mudou e ela não voltoou"

8:57 da tarde  
Blogger Erecteu disse...

Belo post. Intimista, talvez, espero que sim porque revela um momento de felicidade.

10:22 da tarde  

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