quinta-feira, março 23, 2006

Tranquilidade

Caminhava em passadas largas como se avançasse por um oceano povoado unicamente por algas. Os prédios de três andares desenhavam o caminho por onde uma multidão anónima escoava em direcção a mil destinos diferentes. Eram 11 horas, quase tempo de almoço. Porém, há muito que descuidara a alimentação, enganando a fome com sandes e sumos. Vivia submerso num lamaçal denso e opaco de solidão que muitas vezes o impedia de respirar. Neste lamaçal ele era obrigado a manter algumas relações; no entanto, algumas davam-he prazer. Acreditava veemente que as relações deviam ter sempre um qualquer carácter pedagógico, pois pressupunha como dado adquirido que estamos cá para aprender; defendia a teoria de que todas as experiências são meios para o alcance de patamares existênciais de crescente superioridade. Esta maneira de viver privava-o da tranquilidade inerente a um quotidiano despreocupado e conduzia-o invariavalmente para um estado de atenção absoluta, com o objectivo inexorável de perceber, com o máximo de exactidão possível, o que deveria fazer em prol do meio onde se inseria, não conseguindo inventar espaço para o lazer. Ao fim de uns anos caiu em doença e foi internado. Durante três anos manteve um olhar absorto que não fixava quem se aproximasse. Era alimentado a soro pois não mastigava o que lhe punham na boca. Dormia conforme se encontrava e deixava-se despir, vestir, deitar ou sentar, como se faz a um bébé muito sossegado. Fazia as necessidades quando lhe apetecia, para dentro de umas fraldas.
Numa manhã banhada por um sol apelativo encontraram-no a sorrir. Quando se aproximaram ouviram-no dizer: "Levem-me a casa por favor".
No dia seguinte caminhava em passadas largas como se avançasse por um oceano povoado unicamente por algas. Mantinha as convicções de outrora mas, agora, a tranquilidade com que se apercebia e cumpria o seu dever auspiciava um futuro sorridente. Tornara-se mais sério e ao mesmo tempo, como sempre acontece no eterno e incessante processo de equilíbrio, tornara-se mais alegre. Descobria-se por vezes completamente embriagado de felicidade ao olhar para uma pessoa de quem gostava com a expressão mais severa do mundo, tendo por único móbil a pedagogia a que não renunciara. Facilmente reconhecia nesta fase quanto é verdade o quanto as aparências enganam. "O nosso mundo é feito assim, pensava, ao mesmo tempo que reconhecia a beleza invulgar de uma rapariga que passava, como uma alga anónima, "sempre para a frente, sem hipótese de voltar atrás, rumo a um dos mil e um destinos". E, exactamente neste momento, uma pomba, no chão, sentiu-se presa entre ele e uma pessoa que caminhava em sentido contrário, e voou verticalmente, roçando no rosto dele a ponta da asa direita. Ele parou e ficou a ver o pássaro escapar ileso e livre, rumo à segurança de um dos prédios. Então, lembrou-se de uma pessoa já falecida e muito querida; num segundo foi ter com ela, naquele lugar onde já nada existe, e os seus olhos ficaram molhados. Ele, absorvido pela emoção repentina, não podia perceber que, do parapeito de uma janela, aquela pomba ainda o olhava...

1 Comentários:

Blogger Selene disse...

...não pude deixar de soltar uma lágrima com a tua história. É muito duro perdermos alguém que amamos.

10:31 da tarde  

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