sábado, fevereiro 17, 2007

O sorriso de Q.

Eram todos jovens adultos robustos, saudáveis e irrepreensivelmente puros.
3.
Homens, que as mulheres haviam ficado no outro lado do lago gigante, fazendo colares de flores e trauteando melodias alegres.
Eles e elas, nús, bronzeavam os corpos sob a insígnia do Deus sol nos tempos em que a humanidade ia a meio do caminho que a levou aos dias de hoje.
Jamais um ser humano havia mergulhado no lago que permanecia, desde tempos imemoriais, calmo e imaculado.
Todos os homens experimentavam um fascínio claro por ele, por suas águas e profundezas misteriosas. Onde o secreto toca o misterioso, encontrando num mesmo momento uma alma humana, esta jamais será a mesma, a menos que esteja doente e insensível aos estímulos agressivos do conhecimento que a espevita e incita a avançar, como a ponta de um chicote faz por um cavalo que ainda não foi totalmente amestrado.
Estavam os homens em silêncio cúmplice, ouvindo as gargalhadas do vento quando, vinda aparentemente do nada, uma folha pousou a seus pés por um segundo para, no segundo, levantar voo. Os três olhares, pregados na folha, acompanhavam-na no seu delírio de liberdade. Em espiral, a folha avançava sobre a superfície do lago e, perante a incredulidade das testemunhas, acabou por cair na água, desde sempre intocável. Os três homens entreolhavam-se boquiabertos e quando um deles sentiu brotar dentro de si a semente da aflição, os outros enlouqueceram aos olhos do primeiro, dando saltos na erva, fazendo caretas esquisitas e babando-se como bebés sem razão.
A semente de aflição de Q. depressa secou, criando na sua alma um totalmente novo espaço que, embora pequeno, urgia preencher.
Q. olhava com espanto os seus companheiros ao mesmo tempo que experimentava a incómoda sensação de intranquilidade. Pela primeira vez na vida daqueles homens, pelo lado de Q., a necessidade de pesquisa do insondável nascia e levantava-se na planície da sua quietude, como um rochedo imenso que a erosão de milénios transforma em abrupto penhasco.
Os três homens continuavam indiscutivelmente ligados mas Q., pela primeira vez iria afastar-se dos seus amigos para, na destruição do que foi, lhes dar a razão. Não foi sem sacrifício que o animal se fez humano nem é sem sacrifício que o humano se faz animal, e nas duas situações, a metamorfose alcança tal poder de violência e destruição que a sua visão causa o mesmo tipo de cegueira que dois olhos experimentam quando olham longamente o Sol.
Q. levantou-se e os seus companheiros olharam-no distraídos. Quando perceberam que Q. estava na eminência de tocar as águas do lago, uma semente de aflição brotou no fundo de cada um deles.
Os pés de Q., já mergulhados na água, continuaram a avançar e das sementes um pequeno caule emergia e transformava-se ferozmente em planta que invadia inexoravelmente as almas dos dois amigos que, ao verem Q. afundar-se, puxavam, nervosos, os cabelos.
O que se passou a seguir não foi agradável de ver, mas aos homens estão por vezes reservados momentos que ultrapassam em muito o razoável e a mais fértil imaginação.
Q., no momento em que desapareceu no manto de água, começou a descrever círculos como se estivesse sendo arrastado por um qualquer monstro marinho. Os seus amigos só lhe conseguiam ver a cabeça, tal como a ponta de um grande compasso. Quando deram por isso, uma nuvem negra de proporções enormes havia crescido em cima de Q, soltava faíscas, e grunhia como uma fêmea selvagem e enjaulada a quem na sua frente devoram as suas crias.
Q. deixou de se mover e o seu corpo, inerte, boiava na superfície do lago. Os olhos dos seus amigos pousavam nele, poder-se-iam dizer sossegados, se não escondessem, no seu interior, o avanço tenebroso da planta da aflição que, a um ritmo vertiginoso, crescia para se transformar em árvore, cujos ramos e raízes cruzavam e dilaceravam os espaços mais recônditos da zona dos homens que só a alguns é dado ver.
Q. estremeceu e começou a levitar. Quando tocou a nuvem negra, esta desapareceu e ele caiu na água como se esta fosse de pedra. Levantou-se e caminhou sobre ela. O seu corpo estava luzidio, fresco, rejuvenescido, alterado. Ao tocar a terra estancou, olhando os pés por dois momentos. Quando levantou a cabeça, mergulhou o olhar nos amigos. O seu rosto transformara-se num grande sorriso, todo o seu corpo sorria, vibrava, iluminava. Os amigos olharam-no e os seus joelhos caíram sobre a terra. As árvores da aflição murcharam e deixaram neles um espaço de natureza igual ao que Q. experimentara. Um espaço mil vezes o tamanho do de Q. Um espaço irracional, um abismo, uma fome, um enigma, uma fonte que se sustem por si mesma e que está sempre cheia e sempre vazia. Um espaço que urge preencher. O espaço. Aquele que faz de todos nós o bicho mais louco do nosso mundo.

1 Comentários:

Blogger psique disse...

gostei...obrigada pela cisita

9:12 da tarde  

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial