domingo, maio 26, 2013

Sem efeitos colaterais


Um zoloft!
            

quarta-feira, maio 22, 2013

Pargo


Rico peixe!

O amor

Tenho cem olhares solitários sobre mim. Cada um desses olhares tem dez olhares que os olham e cada um desses dez olhares busca apenas um olhar. As palavras são mil, as que ouço são cem e as que falo são dez. As possibilidades são infinitas, mas sobre os meus fortes e pobres ombros tenho o gigantesco peso da publicidade. Se cumpre compre! Se não vejo televisão há meses é por me ter habituado. Ao princípio fez falta, mas depois habituei-me. Habituei-me a não ter televisão. Não é como o amor. O amor, quando não se tem faz sempre falta. O amor são mil sementes em cada coração a germinar a cada passo que se dá. O amor são as palavras que o alimentam. O amor está sempre a nascer e sempre a morrer. Das mil sementes só dez têm chances de crescer para fora do corpo e dessas dez, só uma está em condições de esgrimir contra e a favor de outra semente em crescimento  noutro coração, para fora de outro corpo. Porque o amor não é só crescer e ser amor por ser. O amor também é luta e dor. Dor a cada semente que cai no campo de batalha que é a vida dos amores. Luta a cada momento em que a solidão é pior do que esgrimir; esgrimir para fora de nós no campo de batalha e de amor que é o outro. Mas o outro são mil. Que se transformam em cem; que se transformam em Um.
 Escolho-te. É um desperdício de amor não seres tu, agora, o meu amor.

terça-feira, maio 21, 2013

Miguel Torga

"Confissão

 Trinta e nove anos. Meia vida passada, se isto se for aguentando, tomba daqui, tomba dali. E tudo por fazer! Comecei tarde, sem nenhuma preparação, e com defeitos horríveis, que tenho ido limando pouco a pouco, mas que resistem como fortalezas. Nasci afirmativo demais, puritano demais, uno demais, apesar duma timidez confrangedora, duma aceitação natural da volúpia e duma dispersão aflitiva a cada instante. Tenho medo dum polícia e sou capaz de enfrentar um exército; passo a vida a praticar virtudes que proíbo terminantemente aos outros; escrevo um poema, a dar uma consulta. De maneira que nunca consegui encontrar aquele equilíbrio criador onde julgo existir o pomar das grandes obras. Debato-me entre forças contraditórias, e ao cabo de cada livro sinto-me insatisfeito e culpado como um pecador que não cumpriu bem a sua penitência. Não tenho ambições fora da arte, e, dentro dela, só desejo conquistar a glória de a ter servido humilde e totalmente; mas não consegui ainda dar-lhe tudo, jogar a vida e a morte por ela. Para isso era preciso calcar aos pés o homem civil que sou, e não posso. Necessito de ter as minhas contas em dia como qualquer mortal honrado, e afligem-me os assuntos do mundo como casos pessoais. Também tenho afectos. E a trama de deveres e apegos, embora redima um homem do seu egoísmo nativo, rouba-lhe força criadora. Abandono tudo para correr a casa dum amigo que está com dor de dentes, e passo uma noite em claro porque operei um doente, e ele pode ter uma hemorragia. Mas a minha fraqueza maior é não poder desprezar ninguém, mesmo os próprios inimigos. São meus semelhantes, apesar de tudo, e eu não consigo descrer do homem, seja ele como for. Em vez de os esquecer, trago-os no pensamento. Sofro por eles. A minha grande alegria é admirar os outros, e procuro encontrar em cada um as linhas positivas do seu caminho. Afinal somos todos elos de uma grande corrente, e é pelos ferrujentos que ela pode quebrar. Aflijo-me, solidário com a sua humanidade, que gostava de ver mais generosa, sem reparar que o tempo desaparece, alheio às razões que impedem a semente de germinar. E tudo por fazer! Mas quê! Quando devia estar a ler os clássicos, andava a capinar café; quando me apetece escrever, estou a curar anginas; e quando é preciso salvar o artista, ponho-me a salvar o homem."

 in "Diário (1946)"

sábado, maio 18, 2013

Por cada homem que formula um desejo há uma mulher que suspira.

Gerações

Os jovens são sempre, quanto mais jovens, mais insatisfeitos. E a insatisfação inerente a cada um deles pode roer-lhes os sentimentos e a razão de ser e existir até aos confins do que se presume sempre ser o fim dos fins. Mas, para um jovem, não existem fins e sim consecutivos inícios de uma aventura que está sempre por terminar. Vive-se sofregamente o dia-a-dia, cai-se na cama à noite e dorme-se como num desmaio, para os sonhos megalómanos que se têm de dia voltarem com outras subtilezas inconscientes, na mesma essência: o ego monstruoso a comandar os destinos atribulados; e de manhã recomeça-se tudo de novo, com a mesma energia, com a mesma vontade de encontrar o tudo que enche o vazio, com as mesmas ânsias de carregar às costas o mundo inteiro. Olha-se para o mundo ao mesmo tempo maravilhado e entenebrado, num mesmo momento fortalecido e inseguro, mas sempre com aquela embriaguez de se querer sempre mais e melhor. Um sol não chega, é preciso que o mundo apareça aos seus olhos, humanos, com mil sóis a brilhar ao mesmo tempo, numa comunhão constante. E, à hora dos ocasos, quando as cidades se acalmam, é preciso que o horizonte se encha de astros de infinitas cores brilhantes numa canção silenciosa, composta por quem sabe que há vários tipos de despedidas. Sorri-se para as pessoas com a ingenuidade solta da felicidade, sem olhar a diferenças ou idades, com uma igualdade fraterna que abarca um todo que é incomensurável; os limites do tempo convergem para o mesmo olhar, e a força que nele reside é quase infatigável; e como a energia de que se dispõe jorra constantemente das misteriosas profundezas do ser, é preciso que se aviste num velho amigo os incompreensíveis e inimigos traços do cansaço para que a semente da sabedoria seja fortalecida. O confronto silencioso entre o jovem ávido e o velho inconformado gera um equilíbrio universal em que se sustenta para o segundo a capacidade de enfrentar um caminho que já não é difícil e, para o primeiro outra, não menos importante: a de enfrentar o desconhecido e reflectir na imensidão da existência que o rodeia. Neste movimento cúmplice, nesta dança humana, nesta relação geracional, em que o riso esconde a timidez do jovem e o siso o riso do velho, uma nova calma é restituída e ambos crescem um bocadinho na direcção do desaparecimento. A morte, maldição para o jovem que tudo quer e salvação para o velho que já tudo teve, brinca no meio dos dois e sorri, contente.

Impossíveis

Via-se que estava cansado mas também que havia uma urgência no seu olhar. Corria de língua de fora. Quando o vi apenas travei e esperei que saísse da estrada para o lado que escolhesse. Escolheu a berma da estrada e eu passei por ele pela esquerda, enquanto lhe dirigia um último olhar. Foi quando me senti mal. Percebi que o animal havia sido abandonado há pouco tempo. Era óbvio que andava atrás do tempo que já tinha passado. Seguia a estrada por um caminho cheio de vazio. O vazio proporcional ao tamanho do amor que nutria pelo seu dono. Infinito. Fatigado corria atrás dele ignorando os impossíveis. O impossível de alcançar o automóvel; o impossível de voltar a ver aquele dono; o impossível de ter sido abandonado.

domingo, maio 12, 2013

Olhares

Olhei para o lado, procurei os teus olhos e os teus olhos vieram. Em movimento me afastei e fiquei com o teu olhar a sorrir para o meu olhar. Olhei para trás ouvindo uma voz e encontrei os teus olhos que olharam os meus, sem sorrirem, apenas estando ali, no ar, em contacto com os meus, até desaparecerem sob as pálpebras da tua vontade. Agora é como se o infinito tivesse lançado âncora sobre mim. Os nossos olhares desconhecidos olharam-se despidos e os meus, vestidos, olham o vazio que há, quando não há o nosso olhar.

sexta-feira, maio 10, 2013

A catástrofe

Os dias soalheiros acabavam à medida que se aproximava a grande estação do verão… O calor debaixo das nuvens concentrava-se, molhando as camisolas dos transeuntes. O jardim e as ruas estavam cheias de turistas que observavam e apontavam uns aos outros um ramo de uma árvore, uma janela barroca, ou outro qualquer pormenor, aos seus olhos mais significante. Os taxistas, naquele momento, empurravam os seus carros a fim de avançarem na fila, agora com dois lugares vagos. Um grupo de crianças dividia-se em duas equipas e jogava futebol no anfiteatro exterior, sob o olhar atento de dois professores que iam descongestionando as dinâmicas, orientando-os para valores construtivos e humanistas. Foi quando tudo se deu. Um avião, num minuto, caiu e bateu na torre da igreja que vomitou pedras para cima das crianças, dos professores, dos turistas e dos taxistas, abraçando no seu despenhamento todo o jardim e ruas adjacentes, lembrando os jornais nacionais a efemeridade das vidas humanas, ao mesmo tempo fortes como os circuitos electrónicos do computador e frágeis como pequenas velas acesas na eterna escuridão da morte.