quinta-feira, março 30, 2006

O velho e o jovem

O jovem abeirou-se do velho que remoía qualquer caso do passado sob o sol terno da manhã alentejana e, com um grande sorriso, atirou-lhe à cara: Bom dia!
O velho sem o olhar respondeu:
-Tu não sabes com quem estás a falar!
-Pois não, chama-se a isto travar conhecimento! O senhor também não sabe com quem está a falar!
-Tu não sabes o que fiz na minha vida, pirralho de merda!
-Mas...o que interessa o que fez ou o que não fez? O que interessa é o que ainda vai fazer e...não vale a pena ofender...
-Eu sou o Hitler Português!!!
-Eu sou o Tiago Angolano!!! Prazer em conhecê-lo!
-Quando tinha a tua idade não me metia com os mais velhos.
-Os tempos mudam avôzinho...!
-Os tempos não mudam nada pirralho! A merda é toda a mesma! Quando eu tinha a tua idade estava ocupado a conquistar estas terras todas que vês à nossa volta.
-Já fui ao brasil, já fui a timor, eu sou um conquistadoooor!
-Estás a gozar comigo puto de merda? Vai trabalhar!
-Ohhhh pá...voltamos às ofensas? Deixe-se lá disso!
E olhando o velho com ar trocista acrescentou:
-Olhe... que vir fazer uma partidinha de xadrez?
-Xadrez? Tenho lá idade para jogar xadrez...!
-E uma biscazinha??? Perguntou-lhe o jovem ao mesmo tempo que lhe piscava o olho com a língua de fora numa careta engraçada.
-Vê lá se o gato te come a língua pirralho! Onde é que estão as cartas?
E o jovem num pulo mete a mão na algibeira e saca de um baralho novinho em folha que~dá a cheirar ao velho:
-Mesmo aqui à mão de semear!
O velho arrancou-lho bruscamente das mãos e disse-lhe:
-Eu vou jogar às cartas contigo mas eu sou o Hitler português!
O jovem respondeu rapidamente:
-Já sei, já sei! Baralhe lá isso!
Passaram a jogar todos os dias durante meses. Mas houve um dia que o velho não apareceu. Tinha morrido calmamente e a rir enquanto dormia, a sonhar com algo de engraçado que o seu novo amigo lhe dissera no dia anterior.
Ninguém mais foi ao funeral.

Infinita baldade dos Deuses

Ao oitavo dia Deus estava muito excitado com tudo o que tinha feito mas depressa se foi aborrecendo; e os milénios foram passando de tal forma que nos dias que correm Ele já nem se dá ao trabalho de aparar os pêlos da barba ou os que Lhe saem, rebeldes, do nariz. De forma que anda com uma aparência muito pouco agradável, pelo que há já umas centenas de anos que sua mulher o advertia, queixando-se e chamando-Lhe a atenção para o facto. Estou com a sensação que esta história não vai dar a lado nenhum.
Como Deus não se decidia a ouvir-lhe os queixumes, resolveu um dia abandoná-Lo; fez uma pequena trouxa com os bens essenciais e partiu para outro Universo. Acontece que para sair deste, Ela, chamemos-Lhe Deusa, tinha que passar por um pequeno túnel de sete quilómetros, habitado pelo famoso anjo que um dia se tornou Diabo. Ora a única coisa que ela sabia era que aberta a porta do túnel, não havia possibilidade de regresso e era obrigada a entrar, fechando-a atrás de Si. E foi mesmo quando estava para tocar a maçaneta da dita porta que algo a fez paralisar num misto de temor e respeito; Deus que tudo vê, esperou por esse momento e gritou lá do meio do Universo directamente para o cérebro de sua mulher, com uma voz que superava a de um trovão: "Esta é a última vez que te falo antes de decidires o que queres fazer. Volta Deusa, és a minha mulher! Volta para a minha protecção e o meu carinho!"
Deusa , que agora se encontrava de olhos muito abertos e com a mão decisiva a centímetros da maçaneta da porta respondeu-lhe com trémulo atrevimento:” E tu...se eu voltar...recomeças a cortar os pêlos que te saem do nariz?” Ao que Deus respondeu, não sem uma ponta de irritação: “Disse-te que aquela era a última vez que te falava, não me faças faltar de novo ao prometido!” E ela, magoada, agarrou a maçaneta da porta e petrificou ao ouvir o riso sinistro que no túnel dançava e se debatia por sobreviver à bondade infinita de Deus, chocando de parede em parede, ganhando assim e em cada embate, novas forças que o faziam agitar-se com tenacidade cruel e mórbida, tal qual uma cauda de lagartixa que se debate, separada do seu corpo, ignorando-se perdida. E é no momento imediatamente anterior à paragem do movimento da cauda, quando o riso tenebroso se liga para sempre ao silêncio escuro e frio do túnel, que Deusa, cerrando com força os dentes, abre a porta e entra. O que encontra não a atemoriza pois nada vê senão uma luz densa e infinitamente negra, o que em qualquer ser humano conduziria inevitavelmente a um momento de reflexão, mas que Nela apenas levou à chamada imediata acção dos deuses, ainda que de forma débil, imprópria dos poderosos: pôs-se em movimento tacteando o solo com a ponta dos pés, avançando, cega, pela primeira vez na sua eterna vida.
De repente, sem razão aparente, lembrou-se do seu Deus, de como ele conseguia, por vezes, ser afável e condescendente e esse pensamento escorreu-lhe pelo rosto na forma de duas lágrimas redondas. Quando estas caíram no solo o chão iluminou-se à sua frente numa língua de fogo gelado. Ao fundo do túnel, o rosto sorridente e temido do Diabo apagava a luz que o circundava. Dirigiu-se a ele pronta a enfrentá-lo e, quando não os separavam mais que doze passos, Ela procurou-lhe os olhos, ignorando-lhe o sorriso sarcástico e, quando os encontrou, percebeu intimamente que aquele ser magoado estava preparado para a encarcerar para sempre. Porém, a sua natureza divina despertou Nela não medo mas sim curiosidade, pelo que perscrutou com avidez o seu olhar e, num segundo, para surpresa Dela, ele baixou com submissão os olhos e o sarcasmo do seu sorriso derreteu-se no seu rosto para nele dar forma à mais pura forma de sofrimento que nenhum ser humano poderia jamais suportar: a que deriva da plena consciência de se saber condenado a uma lenta e eterna Solidão. Ela percebeu então que não lhe restava outra coisa senão conversar com ele e, já que o tenho de fazer, pensou, que o faça sem palavras. Então, lentamente, começou a despir o vestido que a cobria e, já nua, entregou-se-lhe daquela forma que nenhum macho solitário consegue recusar. Fizeram amor durante 33 séculos. E finalmente, quando ele atingiu o orgasmo, ela abraçou-o para lhe dar a entender claramente que aquele sentimento de plenitude iria durar nele para sempre, enquanto a sua condenação durasse.
De seguida vestiu-se e abriu a porta, no fim do túnel. Ao fechá-la atrás de si, engoliu a luz branca do novo Universo e descobriu-se deitada na sua própria cama. Confusa por um momento, depressa ouviu o assobio tranquilo de Deus na casa de banho. Ele sorriu e disse-Lhe: “acordo sempre mais cedo do que tu!”
Ela, culpada, levantou as mãos tapando a boca muito aberta. Ele, sorrindo, disse-lhe: ”Não te preocupes! Isso estava previsto e tinha de acontecer!” Então Ela, completamente apaziguada, levantou-se e abriu a porta da casa-de-banho. Deus encontrava-se de frente ao espelho a aparar os pêlos que lhe saiam do nariz.
Quando acabou a tarefa ela ainda o olhava, contente. Ele virou-se para ela e ao mesmo tempo que a atirou para cima da cama como um louco que ama verdadeira e profundamente a sua mulher, gritou-lhe bem humorado: "Só não lhe devias ter dito que ia durar para sempre!" Mas ela replicou, rindo: "Meu querido...e o prazer que essa mentira me deu...?"

quarta-feira, março 29, 2006

Paz e violência

Esplanada num miradouro inundada de sol. O pombo estava deitado no muro a apanhar sol. Fiquei deliciado a olhá-lo e a contemplar aquela calma solitária. Alternava o olhar com o casal da mesa ao lado. Mas estes, embora calados, tinham-se um ao outro para confiar um qualquer pensamento emergente, um qualquer sentimento mais exaltado. Fitei o pombo mais uma vez e longamente. Mas sem reparar como, distraí-me e voltei a mergulhar no livro. Quando levantei outra vez os olhos o pombo já não estava só. Outro tinha pousado ao seu lado e enfiava o bico nas suas penas. Depois houve retribuição. E já eram os dois a mergulhar os bicos nas penas do outro. Olhei o casal de humanos, olhei o casal de pombos, pensei nela e...voltei à sala onde o príncipe se encontra parado no tempo e ao sabor da minha vontade a explicar aos seus opositores, diante dos seus amigos, que as suas intenções, afinal, não iam contra o pensamento daqueles. Há uma passagem nesse acto que me surpreendeu: "...refugiou-se num canto, escondendo o rosto nas mãos. Experimentava um intolerável sentimento de vergonha, e a sua alma de criança, que ainda não pudera familiarizar-se com as baixezas da vida, estava imensamente perturbada."
Olhando agora de longe e só com a memória, aqueles pombos ao sol, o sorriso dela ou o seu olhar azul e doce, inteligente e profundo as baixezas da vida perdem força e deixam de existir completamente; é nestes momentos que o meu peito se enche de ar; e como não tenho mais nada para fazer, ponho-me a encher balões.

terça-feira, março 28, 2006

Enigma

Porque é que será porque é que será
adivinhem lá minha gente
porque é que será minha gente
que não caibo em mim de contente?

sexta-feira, março 24, 2006

Amor

Eu sei
o tempo tem passado
eu sei
tenho sido um tolo
mas espera
espera mais um bocadinho por favor
eu estou a chegar
acredita em mim
eu estou a chegar

quinta-feira, março 23, 2006

incoorrespondência

Uma carta de amor sem resposta é como um balão que se fura e cai morto no chão.

Tranquilidade

Caminhava em passadas largas como se avançasse por um oceano povoado unicamente por algas. Os prédios de três andares desenhavam o caminho por onde uma multidão anónima escoava em direcção a mil destinos diferentes. Eram 11 horas, quase tempo de almoço. Porém, há muito que descuidara a alimentação, enganando a fome com sandes e sumos. Vivia submerso num lamaçal denso e opaco de solidão que muitas vezes o impedia de respirar. Neste lamaçal ele era obrigado a manter algumas relações; no entanto, algumas davam-he prazer. Acreditava veemente que as relações deviam ter sempre um qualquer carácter pedagógico, pois pressupunha como dado adquirido que estamos cá para aprender; defendia a teoria de que todas as experiências são meios para o alcance de patamares existênciais de crescente superioridade. Esta maneira de viver privava-o da tranquilidade inerente a um quotidiano despreocupado e conduzia-o invariavalmente para um estado de atenção absoluta, com o objectivo inexorável de perceber, com o máximo de exactidão possível, o que deveria fazer em prol do meio onde se inseria, não conseguindo inventar espaço para o lazer. Ao fim de uns anos caiu em doença e foi internado. Durante três anos manteve um olhar absorto que não fixava quem se aproximasse. Era alimentado a soro pois não mastigava o que lhe punham na boca. Dormia conforme se encontrava e deixava-se despir, vestir, deitar ou sentar, como se faz a um bébé muito sossegado. Fazia as necessidades quando lhe apetecia, para dentro de umas fraldas.
Numa manhã banhada por um sol apelativo encontraram-no a sorrir. Quando se aproximaram ouviram-no dizer: "Levem-me a casa por favor".
No dia seguinte caminhava em passadas largas como se avançasse por um oceano povoado unicamente por algas. Mantinha as convicções de outrora mas, agora, a tranquilidade com que se apercebia e cumpria o seu dever auspiciava um futuro sorridente. Tornara-se mais sério e ao mesmo tempo, como sempre acontece no eterno e incessante processo de equilíbrio, tornara-se mais alegre. Descobria-se por vezes completamente embriagado de felicidade ao olhar para uma pessoa de quem gostava com a expressão mais severa do mundo, tendo por único móbil a pedagogia a que não renunciara. Facilmente reconhecia nesta fase quanto é verdade o quanto as aparências enganam. "O nosso mundo é feito assim, pensava, ao mesmo tempo que reconhecia a beleza invulgar de uma rapariga que passava, como uma alga anónima, "sempre para a frente, sem hipótese de voltar atrás, rumo a um dos mil e um destinos". E, exactamente neste momento, uma pomba, no chão, sentiu-se presa entre ele e uma pessoa que caminhava em sentido contrário, e voou verticalmente, roçando no rosto dele a ponta da asa direita. Ele parou e ficou a ver o pássaro escapar ileso e livre, rumo à segurança de um dos prédios. Então, lembrou-se de uma pessoa já falecida e muito querida; num segundo foi ter com ela, naquele lugar onde já nada existe, e os seus olhos ficaram molhados. Ele, absorvido pela emoção repentina, não podia perceber que, do parapeito de uma janela, aquela pomba ainda o olhava...

quarta-feira, março 22, 2006

Tomada de Posse II


Parece saídinha de um livro de banda desenhada...

Romance

Lembravam dois cisnes enamorados, aquelas duas crianças de sorriso seguro no rosto e fitando-se demoradamente nos olhos. O parque estava cheio de meninos e meninas que exploravam os baloiços e os carroceis, mas aqueles dois tinham-se colocado a um canto e dir-se-ia que se conheciam há já trinta anos. Ela dizia-lhe, "espera!" e, enquanto ia ao canteiro das flores, ele seguia-a com o olhar tranquilo e brilhante de amor. Ela voltava e oferecia-lhe a flor dizendo que ele era tão bonito quanto ela. Então era a vez dele; levantava-se, escolhia a flor que lhe parecia mais bonita do canteiro e oferecia-a timidamente mas advertindo:"nem esta flor, que é a mais bonita que já vi, consegue ser tão bela como tu!" Ela sorria-lhe ainda mais, contente e embriagada com as palavras.
E estavam nisto há horas, alheios às brincadeiras das outras crianças. Trocavam carícias, beijos e palavras doces. Um autêntico romance.
Tinham-se visto pela primeira vez naquela tarde e expontaneamente se sentaram e começaram a namorar. Lembravam dois cisnes enamorados. E eu, agora, é como se estivesse para ali, sentado no banco do jardim, a tirar fotografias para transportar na cabeça, para onde quer que vá, e para as invocar, especialmente em momentos como este, em que à frente só vejo um caminho infinito e cheio; cheio de vazio.

segunda-feira, março 20, 2006


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sexta-feira, março 17, 2006

Inocência

Acabei de postar um comentário no blog de um amigo que anda cá há tempo suficiente para me ter visto nascer, juntamente com os seus dois filhos que, dizem, os meus pais foram aos mesmos piqueniques que ele e o seu amor, acabei de postar um comentário, dizia, e deu-me uma nostalgia tão repentina que me abriu o peito em dois bocados absolutamente desiguais; o grande bocado contém todo o meu passado de miúdo, de festa de ignorância de...falta-me o termo, aquilo de que todas as crianças protegidas são dotadas!, não é ingenuidade é...chissa! Não quero perder tempo. E o segundo bocado o presente, morno, claro, estável...pelo menos até que se transforme em futuro.... E uma ferida se abre, um grito se cala, uma tempestade se acalma um punho se abre e se transforma numa mão que não aperta nem agarra mas passa ao de leve, numa carícia propositada; e um riso se fecha e se torna em sorriso que ama tanto o bem como o mal que ambos são necessários, e uma página se escreve, uma palavra se perde, um entendimento se esvai na solidão, às vezes felizmente, outras infelizmente mas que é sempre ameaçada pelos filhos da civilização que deambulam, com mais força naqueles que na ilusão de um trilho bem traçado, passam com uma pressa legítima e pertinente mas que impertinentemente lhes rouba, talvez para sempre, o sabor de estender a mão a um pingo de chuva que teima em pairar, resoluto em não se deixar cair, não por receio de ser esmagado na calçada dura fria e estéril- a morte não o assusta- mas por convicção de que o seu lugar é um campo infindável onde as flores dançam com plantas de cem cores e o céu que o resguarda deixou de ser o limite infinito que a mente humana cria todos os dias para ser um início de algo que ele, o pingo, decidiu um dia ousar desejar.
E assim, a infância, perdida e arrumada, me devolve o termo que me faltava lá em cima, a inocência.

Altruísmo

Postando, apostando na marcha em lentidão
sem pressas ou guerras que não as da razão
olhando, sentindo, sabendo o que importa
sem porta vidros ou grades, receptivo aos tantos destinos.
Desatinos, sem lamentos que o choro é solidão,
querendo o teu bem
também, convém, com cem setas amigas
despidas, queridas, prontas a rumar
ao único destino que eu lhes posso dar

segunda-feira, março 13, 2006

START GAME

A seguir a um breve assunto que tenho de tratar irremediavelmente, vou para o yahoo desafiar alguém para (agora vou ser tendencioso) o jogo mais especatacular do mundo.

domingo, março 12, 2006

Tomada de posse


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Estava ao lado do Bush mais velho. Não sei quem é. MAs inspira confiança!!!Em que estará a pensar...? Em quem está a fitar o olhar?

sexta-feira, março 10, 2006

A advertência

Há um tipo de pássaros, na minha imaginação, que após a refeição não pode voar sem o perigo de uma mortal indigestão. Esta pequena história tem como únicas personagens dois pássaros dessa espécie, um ramo verde e o chão:
Um pássaro que se propunha poisar num ramo verde, ao pé de outro , é advertido por este "não poises! o ramo não aguenta!" Ignorando a advertência ele poisa bem ao lado do primeiro. Este só tem tempo para dar uma violenta bicada no olho do segundo, antes do ramo partir e se estatelar no chão: O primeiro ficou no solo, à mercê dos predadores; o segundo, agora cego de um olho, como não tinha comido, pôde voar para longe; um único pensamento ocupava-lhe a mente: "Xissa! Dizem- quem te avisa teu amigo é!!!Que grande mentira!"

quinta-feira, março 09, 2006

O bêbado

O homem estava deitado em plena via pública, debaixo de um túnel. Tinha o pénis de fora da braguilha. Parei a averiguar se estava bem. Olhou-me com os olhos fixos. Continuei a andar pois tinha coisas que tinha de fazer (…). Porém, não consegui andar mais que 30 metros até um pensamento muito claro e lúcido se formar na minha cabeça para deter a minha marcha:”Aquele homem não está bem!” Inverti o sentido rapidamente e dirigi-me resolutamente ao túnel. Lá estava ele na mesma posição. “Sr.! Está bem?” Olhava-me com os olhos esbugalhados. “O que esteve a beber?” Nesta altura o homem lutava para esconder o sexo dentro das calças. A luta ainda foi maior para apertar a braguilha. Insisti “O que esteve a beber?” Respondeu ao mesmo tempo que levantava o queixo, como que para empurrar a palavra: “Cerveja!” “E mais do que a conta! Quer-se levantar?” Como não respondesse repeti:”Quer-se levantar?” Assentiu com a cabeça. Estendi-lhe a mão, agarrei-lhe o pulso, ele fez o mesmo ao meu e, assim ligados fizemos uma tentativa frustrada. O fulano não se tinha nas pernas. “Bateu com a cabeça!”, disse-lhe ao notar um galo enorme, ensaguentado, na testa. À segunda ele levantou-se, mas não sem ficar pálido como a polpa de uma maçã paradisíaca. Não desmaiou… Declarou: “Eu quero é mijar…” “Bom, respondi, tem aqui ao lado um café, ali em frente outro...” Mas verifiquei que o homem não havia de conseguir dar dois passos sozinho, pelo que lhe disse: “Se for sempre assim apoiado à parede, depois da esquina tem um café!” E continuei a frase a pensar “donde se calhar o expulsaram…” “Ou então... faz mesmo por aqui!”, disse lançando um olhar em volta. Ele resolveu-se afirmando:”Vou fazer mesmo aqui!” Despedi-me dizendo-lhe:”não beba tanto sr.!” Foi engraçado...ele concordou com um aceno de cabeça.

Declaração de intenções

É o post anterior, o chamamento, algo inacabado que proponho continuar na forma de um conto.

quinta-feira, março 02, 2006

O chamamento

Aquela montanha nasceu aquando as primeiras erupções daquele continente. Foi a única que sobreviveu às que vieram a seguir. Era portanto a mais alta, furando com o seu cume delicado o princípio do céu.
Naquela noite, José Bisgatelim, pastor de ofício herdado de gerações esquecidas, decidiu fazer um passeio antes do despontar da madrugada. Dado a sonos certos e regulares, viu-se perante algo inusitado: a escuridão. Abrira de repente os olhos que ficaram muito abertos ao encontro de uma parede de negro que brotava da noite sossegada, e um só pensamento lhe povoava a mente deserta: “É isto um chamamento?” Normalmente sério, o seu rosto estava agora severo, rude, poder-se-ia dizer mesmo que aquele homem tinha recebido a notícia que punha em causa a existência de alguém ou algo que lhe era particularmente querido e pela qual sentia a emergência natural de vestir as vestes de guerra. Mas não, sentia-se em paz... Nesse momento desviou, no escuro, os olhos em direcção ao som do sino que anunciava as duas horas da manhã. O seu semblante num segundo se modificou. Sorriu com descontracção ao pensar que em toda a sua vida jamais tinha ouvido o sino dar aquelas duas badaladas. Levantou-se. Sentia-se estranhamente desperto, com o corpo enérgico, cheio de força. “Um chamamento?” Pôs-se dentro das roupas do dia anterior e saiu de casa.
O caminho que tomou poderia levava-lo à montanha, ele não sabia mas era para lá que se dirigia. Percebeu que nunca tinha andado assim. A cabeça estava separada do corpo e não pensava, não regulava, não observava nem avaliava; registava, é certo, mas como quem viaja de comboio e contempla distraidamente a paisagem intocável; o seu corpo era o seu comboio e não era ele que o movia. Isso era a coisa mais certa do mundo.
Quando reparou nas estrelas percebeu-lhes um brilho especial: !”Que Diabo!”- Exclamou franzindo a testa- “O que se passa com esta noite em que tudo se me aparece à vista de forma estranha?” E passado um segundo de meditação concluiu com ironia prazenteira: “O mais certo é eu estar deitado na minha cama a sonhar com isto! Seja como for... toca a andar!”
Numa hora chegou à base da montanha. Levantou a cabeça pequenina em direcção à cabeça descomunal da monstra pré-histórica de pedra basáltica e teve um sobressalto ao ver passar com uma rapidez surpreendente uma mancha que tapava as estrelas à medida que avançava. Pouco dado às explicações sobrenaturais, pôs de parte a sensação de ter visto um fantasma e satisfez-se ao pensar que se tinha tratado de uma nuvem brincalhona; ora não há coisa mais gratificante para um homem de bom senso do que verificar que tem razão e aí estavam as pequenas gotinhas de chuva, suaves como beijos de criança, a acariciarem-lhe o rosto e a comprovarem que estava certo:" Cá está o fantasma a ..." Que pode este narrador dizer quanto ao que se passou a seguir? Bom...A verdade!
Um som gutural interrompeu-lhe a frase. Como se a terra ela própria estivesse a arrotar. Um arroto longo e monocórdico. Quando parou e tudo ficou sossegado ele só teve tempo para ficar aterrado com o que lhe estava a acontecer: a terra pôs-se a tremer e uma pedra com o dobro da sua altura veio cravar-se ao seu lado esquerdo. Estupefacto viu uma outra, do mesmo tamanho, aterrar ao seu lado direito. Olhou para cima e viu uma terceira cair em sua direcção pronta a esmagá-lo se as duas primeiras não a tivessem amparado. De qualquer forma ele não pôde evitar acocorar-se instintivamente levando as mãos à cabeça. Como um bicho assustado, reparou que tinha defecado involuntariamente. “Porra! Que grande cagaço!” A seguir desabou-lhe a montanha toda em cima. E nesse momento, encaixado entre as três pedras, a sua mente começou a criar um fio de pensamento, tal qual um fio de água de uma nascente que brota silenciosa e timidamente da rocha para se dirigir a um grande oceano, mas não sem nele se fundir, e ao mesmo tempo, tornar-se nele próprio.