quarta-feira, junho 29, 2005

Jorge Palma

No outro dia comecei de repente a cantar com um enorme prazer uns versos deste nosso artista. Aqui está ela.
Merda, deu-me a, nem me lembro da palavra que define o que me deu! Granda...como se chama quando nós não nos lembramos de algo?
Ah!

"Existem mil produtos para encher o vazio
Criámos computadores para ampliar a memória
E todos nós temos disfarces para aumentar a confusão
Só não sabemos como fazer o amor durar
O grande enigma continua a dar-nos cabo do coração"

Mas a palavra que dá significado ao que me sucedeu ainda nã... AMNÉSIA! Ahhhhhhhhhhhhhh!!!

terça-feira, junho 28, 2005

Uma história (Fim)

Abriram a porta do restaurante como que dizendo abre-te sésamo telepaticamente. O estabelecimento era novo e tinha um aspecto de aquário de águas limpidas onde o ar condicionado mantinha o ambiente fresco. André e Ana mal entraram dirigiram ao mesmo tempo o olhar para a mesa de Helena no momento em que a ouviram dizer olha quem vem ali, palavras com que praticamente acabámos o capítulo anterior. O homem sentado solitariamente na mesa do lado olhou também para Helena mas não ligou importância para o objecto das suas palavras, o casal arranjado por Helena.
André combinara encontrar-se com Ana para levá-la ao restaurante, pensando que depois a levaria a casa. Raciocínio imprudentemente precipitado. O destino frio e inevitável de que já tivemos oportunidade de falar iria reservar para ele algo de muito mais saboroso; mas, voltando ao restaurante, encontramos André e Ana a cumprimentar de longe Helena. Ambos se dirigiram para a mesa enquanto o homem solitário abandonou por momentos a sua para ir à casa de banho. Quando o casal recém chegado cumprimentou o casal já instalado, já o homem da mesa do lado não estava no seu lugar; e, a esta altura da narrativa já se pode adiantar que o homem solitário, para não passarmos a ser obrigados a chamá-lo de homem misterioso, era Tiago, o acompanhante de Rute que, mesmo estando prestes a chegar ao restaurante já não se poderá imiscuir de baixar a cabeça num gesto de aceitação e isento de contrariação, se o irmão lhe atirar à cara que nestas coisas ela chega sempre atrasada.
Dois, Helena e o seu grande amor, Hugo, mais dois André e a amiga de sua ex-namorada, Ana, quatro, mais dois Tiago e sua amiga de mestrado, Rute, seis. Ora que grande emaranhado de pessoas encontramos neste momento. Porém, os acontecimentos são simples e fáceis de acompanhar. Vejamos.
Helena encontrava-se exuberante e extremamente alegre por finalmente conseguir apresentar a André o seu namorado, podendo concluir assim facilmente, numa introspecção futura, a importância e influência que o primeiro lhe tinha outurgado da relação de sete meses. Helena era daquelas pessoas que gostava de contagiar os outros de alegria com as suas próprias alegrias e fazia-o tão expontânea e ingenuamente que acabava por conseguir fazer as delícias dos seus amigos. André, por seu turno, deixara-se mesmo contagiar pela alegria de Helena e , olhando para Ana reconhecia nela agora, talvez por causa da embriaguês emocional que Helena lhe proporcionava, uma beleza muito especial. E foi neste momento que Rute entrou no restaurante e reconheceu imediatamente André, olhando para Ana aquele olhar brilhante de felicidade irredutível; foi neste momento também que, sentindo as pernas tremer e o coração cair-lhe do peito para o estômago que se arrependeu determinantemente por não ter respondido à carta singela que André lhe havia escrito um ano antes. Mas este momento não é duplo, é triplo ou mesmo quádruplo se a ele juntarmos a abismável estupefacção de Hugo e Helena, únicos que puderam testemunhar tudo quase tão macroscópicamente como o próprio leitor; momento triplo porque a adicionar ao já acontecido aparece Tiago que tropeçando numa cadeira se vai estender ao comprido por cima da sua mesa partindo copos e chamando a atenção de todo o restaurante e sobretudo a de Ana, olhada, como já sabemos, por André.
Talvez que as dores do arrependimento sejam tão fortes que irradiem para fora o que não se vê senão por dentro, quando o esforço de quem sofre se vira para a sublimação e para o disfarce; aqui, no caso de Rute, francamente atingida, as coisas correram a seu favor pois o seu par,Tiago, tropeçando na cadeira fê-la dirigir o seu sofrimento para o lugar pouco profundo de onde nascem os sorrisos fáceis e assim facilmente se compôs numa atitude de simpatia, dirigindo-se à mesa onde o irmão já ajudava Tiago a arranjar o que no meio dos copos partidos se podia arranjar. Mas já não o faz sem que André se volte para trás, largando o olhar que tinha em Ana, e a reconheça sem contudo lhe reconhecer aquele sorriso. Num ápice André pensou e sentiu com uma força avassaladora, Sim, é Rute, por detrás daquele sorriso é Rute, aqui?.
Um empregado do restaurante avançou de guardanapo no braço e foi auxiliar um Tiago embaraçado, um Hugo altruísta, ambos sob o olhar atento de Helena e Ana. André não largava Rute e, no momento em que ela se aproximou o suficiente, quando ia a gritar o nome dela o nome que ecoa na sala não é, estranhamente, "Rute" mas sim "Ana", e quem grita não é André, é Tiago.
O embaraço de Tiago transformara-se em instantânea alegria ao ver Ana. "Ana, és mesmo tu?" gritou agora um pouco incrédulo e Ana denunciou que sim, sorrindo timidamente, que era ela, a Ana, uma antiga paixão de Tiago, agora ali reunidos por obra do acaso, numa mesma mesa de Lisboa. "Não te lembras, balbuciou Ana à sua amiga Helena, não te lembras do Tiago?". Pois recordando o olhar do antigo colega, Helena percebeu que a sensação de deja vu anterior não era mais do que o despontar interrompido de um reconhecimentode de alguém que já não se vê há muitos anos e riu, riu muito, viva e alegremente. Depois, ainda avermelhada do riso disse para o namorado, Então esta é que é a tua famosa irmã Rute, ao mesmo tempo em que lhe estendia a mão e a conduzia a uma cadeira.
Dois mais, um mais um, quatro, mais, um mais um, seis.
Assim decorria em euforia o começo do jantar onde ninguém percebeu a troca de olhares cúmplices entre André e Rute, silenciados pelas circunstâncias e únicas pessoas, para além de nós, a perceber que o insólito daquele jantar ainda era maior do que o que os presentes suponham.
Helena tinha alguns conhecimentos de regras de alta sociedade e assim dispôs na mesa, alternadamente homem e mulher. A ordem era a seguinte: Hugo/Helena, André, Ana/Tiago, Rute. Neste momento André encontrava-se a uma distância interminavel de Rute.
A noite foi-se animando com uma grande proximidade entre todos, as conversas fluíam como dois fios de água que não se cruzam, os risos enchiam o restaurante melódicos como os cantos matinais de dois pássaros enamorados, mas o empregado de mesa, responsável por aquela ala do restaurante, atento e já experiente em relações humanas, torcia o sobrolho na tentativa de perceber o que é que estava mal naquela mesa, aparentemente tão harmoniosa. E foi quando começou a levantar os pratos que ele percebeu: André aproveitou o momento, acalmou o ritmo das batidas do seu coração e dirigiu-se a Hugo "Amigo, não te importas de mudar de lugar comigo?". André assim que se senta ao lado de Rute, finalmente para ele e para ela, estende-lhe a mão por baixo de mesa encontrando a de Rute e as duas apertam-se tanto que parece nada haver neste mundo que as pudesse separar. Verdade absoluta. André gira a cabeça e encontra o sorriso de Rute, aquele que ele conhecia. Foi quando Ana observou com ironia simpática, Olhem para eles, parece que se conhecem há anos.
O empregado levantou os últimos pratos e foi-se embora com algo imperceptível nos lábios, era o começo de um sorriso, um sorriso nascido da certeza de um agradável fim de jantar, um fim que era afinal e apenas um começo de algo novo.

Fim

segunda-feira, junho 20, 2005

Uma história V

A manhã dissolvia a noite num avanço constante e inabalável. Os pássaros há muito que haviam começado as conversas despertinas e alguns carros começavam a enfileirar-se na luta quotidiana da movimentação caótica de Lisboa.
André despertou bem disposto, com aquele cd de meditação que Helena lhe oferecera numa das viagens que fizeram. Em vez de se virar para o outro lado, ao abrir os olhos, sorriu com a sensação de que o dia ia ser especial, que lhe ia trazer algo de novo.
Esperara um ano inteiro pela resposta de Rute e o desapontamento inicial que deu lugar à angústia de se adivinhar ignorado originara agora um sentimento forte que estendera as suas raízes na certeza de que de Rute já nada viria. Estava pronto para seguir em frente, esquecer o episódio Amor d'Infância, e embarcar em algo novo. E se os pensamentos que temos se agarram a outros novos porque os primeiros se deram e os proporcionaram ou se, por outro lado, não há entre eles qualquer mecanismo de causa e efeito, o facto é que André não pôde suprimir uma sensação de bem estar ao lembrar-se do jantar desse dia. Há muito que Helena lhe falara do seu Agente de Viagens e do seu olhar crente em supor neste o grande amor da sua vida, a sua alma gémea, e que insistia em que se deviam conhecer dado terem tanta coisa em comum. Ora isto foi o que primeiro catapultou o grande jantar em que André iria conhecer e acompanhar Ana, uma amiga de Helena, que se encontrava no país por acaso. Enquanto deslizava para a torradeira, André pensava serenamente que tudo caminhava conforme os seus desejos, uma amiga de Helena, uma noite de flirt que se podia estender a toda a temporada de permanência de Ana e depois puf, de volta ao nada ou, quem sabe, se naquela emigrantre estava a musa dos seus sonhos; assim estava a disposição de André, naquele ponto em que queremos mas não forçosamente, em que forçamos mas sem querer e em que acreditamos que é hora de deixar andar o barco que depois logo se verá.
Já se sabe ou se supõe neste momento que está o narrador a forjar os acontecimentos para juntar Rute a André, conforme foi anteriormente declarado, porém, e não obstante a tentação, o que vem a seguir relatado trata-se tão somente do acaso do destino que tanta força tem em ser irónico como em incontornável. Sigamos portanto.
Se isto fosse uma daquelas películas de cinema contemporâneo conseguíamos colocar separando o ecrãn ao meio Rute, a acordar noutro ponto de Lisboa ao mesmo tempo que André. Pois tal foi o que exactamente aconteceu. A grande diferença estava nas suas disposições. Se do lado esquerdo do ecrãn pudéssemos colocar André sorrindo como atrás descrito, do lado direito apareceria Rute a abrir os olhos às prestações para no final esboçar logo pela manhã uma expressão horripilante de quem adormeceu em lençóis de seda e acordou no meio de um lamaçal de merda onde os porcos se esponjam. Oinc, oinc fez a Rute transformando o seu mal estar em humor como lhe era francamente conhecido, saindo da cama de estrume a fingir ser um daqueles porcos enormes que se vêem em feiras e se deslocam muito pachorramente. Assim foi, de quatro, até à casa de banho,oinc oinc, onde finalmente assumiu a posição bípede para alcançar a escova de dentes, decidida a arrancar aquele sabor quente e desagradável da boca. À medida que escovava os dentes passava a pente fino mentalmente a agenda do dia e lembrava-se com um sentimento vago de desconforto o jantar marcado com o irmão. Mas não podia adiar. Seria a terceira vez e isso não seria de uma irmã que zela, como ela, pelas relações familiares. "Lá estarei, pronto, não há volta a dar". De repente a voz do irmão ecoou-lhe dentro da parte posterior da cabeça: "É um jantar de casais hein? Tens de levar acompanhante, se não tens namorado...arranja um!"
Lembrou-se do seu já querido amigo e colega de Mestrado e telefonou-lhe a perguntar se queria juntar-se a eles, e Tiago, contente, que sim, que lhe dava mesmo jeito espavonear um pouco e sair do computador.
Dois mais dois mais dois seis.
Por lapso olvidámos aqui o nome do namorado de Helena. "Hugo, despacha-me esse cu, vamos chegar atrasados!" E Hugo depois de se ter despachado com a calma que lhe era por natureza inerente ainda esperou dez minutos por Helena.
Chegaram ao restaurante dez minutos atrasados mas como ainda não tinha chegado ninguém, sentaram-se numa mesa para seis, ao lado de uma outra onde se sentava com uma expressão de abandono um homem novo com mais 5 lugares à sua volta, todos vagos. Helena sentiu um arrepiu lento na espinha mas não disse nada, calou a sensação de deja vu e disse somente a Hugo:" Olha, e se começassemos por uns aperitivos?". Hugo sorriu-lhe, fingiu que lhe ia dizer um segredo e mordeu-lhe de leve a orelha ao mesmo tempo que a enlaçava com o braço direito. Ela deu um gritinho mesclado de riso e quando abriu os olhos exclamou expontânea, Olha quem vem ali!
Fique o leitor sossegado que em breve está este jantar decorrido e digerido mas, à laia de telenovela, deixemos este episódio para um outro dia.

quarta-feira, junho 15, 2005

Uma história IV

Para que o prezado leitor saiba, sem ter que recorrer a um dicionário de expressões, promessa de narrador alívio sem dor e, como prova indiscutível, eis o que André começou por escrever antes de rasgar a folha por achar que o conteúdo estava demasiado pesado e complicado para uma abordagem que se pretendia leve e de fácil digestão.

Minha muito querida Rute:

Não é fácil, por vezes torna-se mesmo difícil e até insuportável, seguir em frente abandonando passados irrealizados. Porém torna-se notório, para alguém que se mantém livremente atento à complexidade de enredos que se desenrolam à sua volta, que perder ocasiões de uma presumível felicidade é algo a que devemos acostumar-nos, sem que deixemos de batalhar pela desintegração das palas que a sociedade actual quotidianamente nos quer impor com o turbilhão de aliciantes e drogas, para que o nosso olhar se feche em torno de algo, em vez de se manter aberto e lato para aquilo que vai surgindo, vindo de diversas direcções. Mas essas pequenas ocasiões de uma presumível felicidade não se podem colocar no mesmo rol de outras situações que, por nos acontecerem sem que tenhamos tido sequer tempo para pensar ou ponderar nelas, são distintas tal como o preto o é do branco ou a saudade da satisfação de uma necessidade; e dessa distinção ainda figura uma característica, a mais fundamental, que é o facto dessa situação nos mergulhar forçosa e suavemente no fluxo intemporal do suave sentimento de Amor que anda de mãos dadas com a humanidade desde que esta é o que foi, antes de se ter tornado no que é.
"Desde que esta é o que foi, antes de se ter tornado no que é???" Foi neste ponto que André releu tudo. Desgostou e mandou para o caixote de lixo enfrentando nova folha branca:

Minha muito querida Rute:

Experimentámos no passado algo que gosto de considerar como muito belo e gostava de me sentar num banco qualquer contigo a falar sobre o assunto.
Há um ano atrás encontrámo-nos e desde aí que sucederam mais umas reviravoltas na minha vida, confusões que não importa agora descrever, e por isso não pude escrever mais cedo.
Espero que te encontres bem e que possas marcar encontro o mais breve possível.
Deixo-te o meu contacto pessoal para se prefer...ah é verdade!! Disseste que não gostavas de falar ao telefone!! Paciência...Aguardarei uma carta tua.
Teu, sinceramente,
André

Releu e achou que estava telegráfico e simples, que devia cortar a parte do contacto pessoal mas como isso o obrigaria a escrever tudo de novo numa nova folha de papel, deu-lhe um ataque de preguiça que neste caso era justificado, dado que a noite já ia avançada, mas indesculpável quando, em vez de retomar a carta noutro dia, fechou a folha num envelope preparando tudo para enviar logo de manhã. "O que há-de ser meu à minha mão irá parar!", pensou André para justificar o seu acto sem se lembrar que não foi com desmazelo nem num dia que se fizeram Roma e Pavia. Este erro iria custar-lhe a resposta de Rute que não encontrou na carta motivos superiores àquilo que estava a viver no momento: o fim do plano minucioso da possibilidade de ir para Lisboa continuar os seus estudos. Para isso faltava apenas o telefonema do irmão a dizer-lhe que o tal apartamento estava vago; a inscrição no mestrado estava feita e paga.
A decisão de Rute em não responder ao antigo namorado de infância era em tudo egocêntrica e resultava do entusiasmo natural de uma rapariga nova da parte rural do país que nem para tirar o curso superior experimentou viver numa cidade grande e que agora iria para a grande Lisboa...
Mais tarde, como iremos ver, Rute arrepender-se-ia desta decisão, ao mesmo tempo em que a considerava estúpida de todo dado que André morava naquela cidade. "Então se estava de partida para o pé dele???" André, o seu grande amor de infância, cuja única grande falta foi ter-lhe escrito um dia uma carta que lhe parecera na altura pouco entusiasta. Agora, relendo-a, com os olhos banhados de lágrimas e o coração apertado, depois de ter encontrado André num jantar, Rute achava-a perfeitamente normal.
O fim desta história, para sossegar algum leitor mais impaciente, dar-se-á no momento em que todos os personagens tenham, no fim de algumas infelicidades, um final feliz. Por enquanto tem este narrador de encontrar forma de juntar André e Rute naquele jantar. Tarefa para um outro dia. Claro.

segunda-feira, junho 13, 2005

Uma história III

André não desistiu. Deixou-se ficar em frente da câmara de filmar embora um clic tivesse denunciado o abandono da ligação. Encostou a cabeça ao vidro e fechou os olhos até que o estalar do trinco da porta do prédio o arrancou do estado de alheamento em que tinha mergulhado. "É ela", pensou, ao mesmo tempo em que abria os olhos e virava o rosto iluminado pela súbita esperança. Mas em vez de ver a sua ex-namorada viu a cara antipática do vizinho com aquela expressão que usamos para interrogar: o que é que este faz aqui? André, percebendo a situação embaraçosa, afinal não é costume de uma pessoa mentalmente sã encostar a testa ao vidro da câmara de um prédio, como se estivesse dormindo, principalmente tratando-se do prédio da ex-namorada...; percebendo a situação embaraçosa, diziamos, André transformou a luminosidade da esperança num sorriso sombrio, triste e ao mesmo tempo envergonhado. O tipo que o viu é o vizinho de cima de Helena e é um gajo tão já conhecidamente porreiro, tão porreiro que ao embaraço de André correspondeu com um sorriso de escárnio; o episódio não pareceria tão infeliz se a acrescentar o que já foi dito o vizinho não carregasse nos braços uma rapariguinha de três anos que olhava, para mal dos pecados deste narrador, atenta e fixamente o sorriso do pai, já caracterizado. Depois há quem se dê ao trabalho de envergar em discussões intelectualíssimas sobre se o carácter de uma pessoa é hereditário ou culturalmente aprendido.
André viu o olhar inteligente da menina a testemunhar o meio e o fim do sorriso do pai e abandonou-se a uma preplexidade serena, olhando o vizinho afastar-se de costas enquanto a menina, virada para trás, lhe dirigia um grande sorriso de infanta inocente mas já não tanto.
Virou-se para o vidro e voltou a encostar nele a testa.
Os poucos minutos que se passaram podiam ter sido para André uma eternidade dado que entrara num género de meditação Zen em que a única coisa que existia para ele era um imenso e imensurável tom ténue da cor branca. De repente deu-se a repetição de vários fenómenos: ouviu-se o estalar do trinco da porta, o mesmo pensamento gritou-lhe dentro da mente "é ela" e a mesma iluminação da mesma esperança brilhava-lhe no mesmo rosto, ao mesmo tempo que o voltava em direcção da porta.
Era ela.
Desculpa Helena, queria dizer-te, telefonei-te hoje de manhã um monte de vezes, que me esqueci de algumas coisas aí em casa e que importava reuni-las, deixas-me subir? Granda tanga. E para desarme, Helena atirou-lhe com o que menos esperava: Vi com atenção tudo e reuni as tuas coisas em dois sacos, vou só comprar água e já subimos os dois para depois desceres com a tua bagagem. Glup.
Aberta a porta de cima Helena entrou e apontou com o pé os dois sacos que André foi logo investigar. Reflectindo rapidamente somou um mais um e o dois que deu foi a evidência de já não ter nada a perder portanto: E...um papel, um papel velho com uma morada, não viste?
Helena mentiu. André acreditou.
Mas porque o prometido é devido antes de fechar este capítulo importa dizer que Helena conservou religiosamente o papel na gaveta da mesa de cabeceira, percebeu que o luto já estava feito quando se interessou pelo funcionário de uma agência de viagens, e três semanas depois de o amor se ter materialmente estabelecido entre os dois, se é que o amor se pode estabelecer materialmente sem deixar de ser amor, Helena decidiu, por honra, telefonar a André.
"Olha, ainda bem que te apanho! Lembras-te daquele papel com uma morada?"
André ficou tão contente, tão entusiasmado que voou para a secretária e começou a escrever uma carta para Rute; o conteúdo dessa carta, por não ser secreto, como nada nesta história o é, será publicado outro dia. Prometo.

sexta-feira, junho 10, 2005

Uma história II

Ele acordou bem disposto e motivado. Tão depressa saiu da cama que ia partindo uma perna ao escorregar numa meia perdida. Já é tempo de sabermos. Ele chama-se André.
A primeira coisas de que se lembrou de fazer depois do pequeno almoço de frutas, queijos e bolachas integrais, foi de discar o número de Helena para fazer o número do "esqueci-me aí de algumas coisas, posso passar a que horas?", afinal a ruptura tinha-se dado pacificamente, não havia razão para ela rejeitar um pedido natural desses.
Depois da primeira tentativa André contou mais 15 e desistiu. Tal era a frustração de não ter conseguido falar com ela que os pensamentos lhe saíram severos: "Porque é que aquela puta não compra um telémovel?". Mas a verdade é que Helena adivinhara quem telefonava e não quis atender. Aquilo do telefone tocar incessante e repetidamente parecia diverti-la e assim, deixava-se estirada no sofá como se estivesse a ouvir uma das belas sonatas de Mozart. Outra verdade que só este narrador poderia saber é que, se André tivesse tentado a décima sexta vez, Helena teria atendido e o número poderia ter sido levado à cena. Mas André desistiu e quando Helena ainda esperava o próximo toque já André vestia o casaco para sair de casa e chegar a tempo da aula de Yoga.
Do outro lado da cidade o divertimento de Helena deixara-a com um sorriso amargo nos lábios. "Ora agora que eu ia atender o homem desiste".
Não são poucas as vezes que aos seres humanos é dado cair nestes jogos de amor, mesmo quando, como supostamente acontece entre André e Helena, aquele já não enche os corações dos amantes.
Só a caminho da aula de Yoga é que André, ingénuo por natureza, admitiu a hipótese de Helena ter feito aquilo que realmente fez, não atender propositadamente o telefone; "as mulheres têm cada uma...!"
Decidiu descontrair e procurou na radio o emissor local de música clássica. "Bethoven, nada melhor para agora"
Helena não tomou o banho matinal. Vestiu umas calças de fato treino justas que coladas às pernas bem feitas deixam os homens malucos, não as pernas as calças, calçou os ténis novos de jogging e foi correr à beira-mar. "A partir de hoje começo a treinar. Ando à tempo demais em letargia"
Quer se queira quer não se queira, no fim de uma relação amorosa em que de parte a parte se investiu tempo e pensamento com base em sentimentos sinceros, na ruptura, dizíamos, ambas as partes ficam sujeitas à possibilidade de grandes alterações dos seus sistemas nervosos e, diga-se de passagem, no caso de André e Helena ambos estavam a reagir bastante bem na medida em que ele parecia não estar a descurar a sua mais importante actividade neurofisiológica e ela demonstrara, na atitude que pudemos testemunhar acima, muita objectividade e acerto de pensamento, não fosse a actividade fisica regular um dos melhores comprimidos que podemos engolir contra qualquer tipo de males e Helena foi ao ponto de comprar uns ténis de qualidade e de escolher aquele passeio construído com um piso macio, amortecedor; não iria ficar certamente com dores de costas.
No fim do dia André foi a casa de Helena. Tocou para o sexto andar e passado um minuto percebeu que alguém levantara o auscultador. Helena, à porta da sua casa, olhava no ecrán pequenino para o rosto de André que, fingindo-se distraído, fingiu um olhar ausente. Helena não pode conter uma gargalhada. André metera o dedo no nariz e revolvia o interior da narina agora com uma expressão de louco. Acabou a palhaçada com um alongado e cansado "Abre lá a porta Helena..."
Helena, lá em cima, percebeu e sentiu de uma forma que ainda não tinha experimentado a ruptura amorosa que estava a atravessar. Sentiu uma dor forte, colocou o auscultador no sítio, soltou uma lágrima sólida e espessa, dirigiu-se ao quarto de dormir, abriu a gaveta da mesa de cabeceira, dela retirou um pedaço de papel amarrotado em que vinha um nome escrito com caligrafia de mulher, murmurou num gemido Rute Santos e começou a chorar convulsivamente. Ainda tinha todo um luto por fazer.
Prometi-vos contar o que André fez para recuperar a possibilidade de se corresponder com Rute e afinal, convenha-nos a sinceridade, ele pouco fez se pouco fazer é telefonar uma mais quinze vezes e já sabemos o que mais...; outro dia conto-vos como é que a morada de Rute foi parar às suas mãos, amachucada e suja de lágrimas, se é que lágrimas de amor podem sujar.

quarta-feira, junho 08, 2005

Uma história I

Andava às voltas à procura de um papel perdido desde que conhecera Helena, a sua ex-namorada. Esse papel continha a morada de uma paixão da infância; aqueles amores platónicos em que não se trocam beijos, em que a timidez é tanta que nos encontros por debaixo das árvores grandes dos jardins escondidos nem as mãos se tocam. Algo que fica no registo das melhores coisas que nos acontecem no principio da vida.
Numa tarde dois encontros. O primeiro, fugaz porque ele está de viagem e tem de continuar, em que ambos não conseguem parar de sorrir: "és mesmo tu?" "ena pá, nem acredito", e que acaba com o endereço dela no bolso de trás das jeans dele. "E a tua morada, não me dás?" "Não, depois escrevo-te!" Ela deve ter pensado que ele lhe mentiu e que não queria mais saber dela. Ele só desejava que ela pudesse saber que nada disso correspondia à realidade, a verdade é que no fim desse dia o segundo encontro entrou em cena.
Helena vinha com um daqueles vestidos leves de verão com duas alças; as costas, destapadas. Andava depressa e os seus cabelos longos iam acariciando-lhe a pele à medida em que as passadas os faziam levantar e baixar. Sorria muito. Ele, bem disposto, com a carta já quente e ainda no bolso de trás, ao vê-la passar ao pé da mesa onde bebia um sumo de laranja, gostou do seu aspecto e levantou-se rapidamente. Fez uma cena teatral em que se referia a ela como um antigo amor perdido e ela acabou a beber sumos e licores, dado que não tinha mais nada agendado para aquele dia, para não falar que gostou de imediato da figura e do sorriso daquele belo rapaz. Encaixaram os dois como uma daquelas peças de legos. Encaixaram de tal maneira que acabaram em casa dela na cama a mostrar um ao outro, encaixando-se, que a liberdade de acção não está separada da satisfação do dever cumprido. Começaram uma "amor para toda a vida" que durou sete meses e, precisamente no dia em que ele se viu sozinho, sem qualquer desejo de recuperar a relação com Helena, que se lembrou do seu amor de infância e do papelinho do bolso de trás das jeans.
Voltou o escritório de cabeça para baixo, desistiu da procura, foi-se deitar, leu as últimas páginas do romance filosófico, sorriu, apagou a luz e, mesmo quando ia para adormecer, lembrou-se do dia em que conheceu Helena, abriu muito os olhos e concluiu que o papel estava em casa dela.
Outro dia conto-vos o que ele fez para recuperar a possibilidade de se corresponder com Rute.

terça-feira, junho 07, 2005

Sobre motivação

É sobretudo na altura em que estamos cegos que deixamos de ver...

Quatro a uma

? Porque é que por vezes não nos apetece ir dormir ou, pior, temos uma daquelas insónias em que pensamos e pensamos e o melhor a fazer é acordar o livro que dorme na mesa de cabeceira?

? O que me separa da morte se já não grito, se já não me agito?

? O que faz com que ache bela aquela frecha de luz que sai do apartamento com tudo o resto ao redor apagadinho?

? De onde veio o mundo?

! Sonhar é poder voar por entre toda a imundice que faz parte de qualquer passado!

domingo, junho 05, 2005

Fim de Tarde (SOS Amigo)

No fim do passeio de fim de tarde que fiz hoje aconteceu algo interessante.
À volta do murinho onde tinha sentado haviam mil e uma futeboladas. Ao longe, um enorme monte deixava-se ficar imponentemente parado. Parecia sorrir. O sol, que já andava nisto há quase 16h, cansado, aproximava-se do monte. Foi nesse momento que dei comigo a pensar donde surgiria a sombra do monte gigante. Fiz um erro de raciocínio e imaginei a sombra a vir por detrás. Na verdade a sombra começou a surgir de frente, de lá para cá engolindo a luz verde da relva que se tornava mais negra. Levantei-me e em vez de ser engolido, como a relva, enfrentei a sombra que se estendia lentamente como um espreguiço. Penetrei o princípio da noite, ouvi as últimas gargalhadas e pontapés, meti-me no carro e fui embora dali, calmo e sossegado. Como se ignorasse que me apetecia ter conhecido alguém.

sábado, junho 04, 2005

Tolices à la Saramago

Estando colocada a questão em cima do molho de coisas por resolver pergunto calmamente a quem possa estar a ouvir quem é o filho da puta do patrão que despachou estes quilos de papelada para pôr em ordem num dia como se nós fossemos cem com cem braços cada.
De seguida penso solitariamente que estou sem forças, sem inspiração e que vá tudo para o diabo, Quem me chamou?, Falei no teu nome não te chamei, É a mesma coisa, Vai-te matar se falar no nome e chamar alguém é o mesmo, Nunca ouviste que, Só me faltava agora era estar a falar com o Diabo...
E que sem inspiração só tolices podem suceder.
E se não somos cem nem temos cem braços cada como é que o cabrão do patrão, Sim, Sim o quê, Fui outra vez chamado, Ohh Diabooo, não te chamei, Tenho muitos nomes, cabrão é um deles, Pois eu não acredito em ti, Não acreditas em mim, Não, Porquê, já alguma vez te menti, Não, é porque apareces cada vez que alguém diz o teu nome, isso não é natural, Então porque falas comigo, Vou fazer um pouco de água benta, já te lixo, ( ) , então, foste embora, ( ) , hehehehe, ( ).

quarta-feira, junho 01, 2005

Certezas

Se nós soubéssemos a coisa não tinha piada. A grande questão das almas gémeas é que só com o tempo alicerçado em tempo as coisas se vão concretizando, as subtilezas se vão somando a subtilezas para se poderem transformar numa pequena certeza que depois acata outra pequena certeza e com isto não raro é já terem passado 20 anos. Antes de tempo tempo houve e depois do tempo que passou adivinhamos no mais tempo que haverá, simplesmente, se tivermos sorte, um sorriso.
Porém admito que há fortes possibilidades de do encontro de duas almas gémeas uma coisa fundamental resulte, um passo de magia: A ausência do tempo, a dissipação desse factor no desenrolar da relação que resulta pacífica, serena, construtiva, fluída.
Sinceramente.Talvez sejas tu. Mas certezas só o tempo no-las poderá dar.
Entretanto vais vivendo a tua vida, eu vou vivendo a minha, e da próxima vez que nos olharmos nos olhos talvez possas dizer se lá dentro ainda encontras as certezas daquilo que precisas.